Quarta-feira, 10 de junho de 2015
1ª Parte – Viagem para o Cairo; Visita ao Museu Egípcio
O dia começou muito
cedo. Às 4h30 estava a pé, e às 5 estava a sair de casa. Já era dia claro. A
cidade estava ainda meio a dormir; ainda não se ouviam os pregões dos
condutores de minibus (minibus é uma pequena carrinha de 9, 10 lugares, que
serve de transporte público) - “Falaqui!
Falaqui!”, pregam eles – postados do lado de cá da linha do comboio, à espera
de encherem os carros. Ainda era muito cedo, mas pelo menos do outro lado da
rua, como eu esperava, estavam postados os minibuses que vão para os lados de
Sidi Gaber, a estação de comboios onde tencionava apanhar o minibus que me
levaria ao Cairo.
Nem foi preciso
perder muito tempo a fazer o sinal de paragem gestual específico da estação de
Sidi Gaber (Sidi Gaber, tal como aprendi no dia anterior, assinala-se com um
movimento pendular da mão em concha, na horizontal, que lembra vagamente o
movimento de um comboio na linha; como nenhum minibus tem indicação do destino
para onde vai, é preciso fazer o sinal específico e aguardar que algum pare em
resposta). Dois minutos depois de ter atravessado a rua parou um minibus em
resposta o meu sinal; entrei e partimos para a estação.
Chegado a Sidi
Gaber, tinha acabado de apear e dado alguns passos na direção da rua esconsa e
escondida, em frente à estação, mas do outro lado da rua principal, onde se
apanha o minibus para o Cairo, quando um condutor pregou “Ramsis! Ramsis!”, que
era precisamente o meu destino no Cairo, a estação de Ramsis. Logo ali à face
da rua, estava o minibus que eu precisava (a competição entre os condutores é
feroz, pelo que é normal aquela hora encontrá-los em posições estratégicas,
quanto mais expostas melhor).
Entrei,
confirmei rapidamente o preço e o destino com o condutor e os passageiros
(nunca é demais perguntar uma e outra vez a mesma coisa a várias pessoas, pedir
várias opiniões, para evitar mal-entendidos que aqui ocorrem com muitíssima
facilidade, dadas as diferenças de língua, e a falta de uma organização a que
chamo “amiga do turista”, que implica, por exemplo, uma extrema dificuldade em
encontrar quem fale um inglês minimamente fluente, sobretudo entre os
condutores, motoristas, e até nos serviços públicos). Às 5h30, carro cheio,
partimos para o Cairo.
Foi uma viagem
limpa, sem incidentes, tirando uma operação stop cujo sentido não compreendi
exatamente, em plena autoestrada, por volta das 6h50. Suponho que a polícia
estaria a inspecionar as licenças dos minibuses e outros veículos que
pretendiam entrar no Cairo, visto que estes precisam de ter uma licença
especial para o fazer. Não sei. Também paramos uma outra vez para meter
gasolina. A certa altura ocorreu outro pequeno incidente, em plena auto-estrada
que, tivessem as coisas sido diferentes em, digamos, meio metro, podia ter sido
antes um grande acidente: depois de uma ultrapassagem estranha, o nosso
condutor, meio atrapalhado, lá conseguiu desviar-se, suponho que no último
segundo, de um minibus que vinha em direção contrária… Só percebi quando vi o
condutor subitamente atrapalhado, de repente obrigado a decidir se ia para e
esquerda ou para a direita, e ouvi um “zuuumm” tão súbito e curto quanto
estridente, que fez a carrinha abanar, provocado pelo outro carro que vinha em
sentido contrário, a rasar-nos à nossa esquerda (percebe-se o porquê de todos
os anos, no Egipto, morrerem mais de seis mil pessoas só em acidentes de
viação). E um passageiro, dois assentos à direita de mim, com um ângulo de visão
muito melhor que o meu, viu com certeza a cena toda desde o início – suponho,
por isso, que deve ter visto em flashback não apenas toda a sua vida atual mas
também umas quantas vidas passadas, tal foi o salto que deu no assento e a
intensidade do gesto de reprovação que fez com a cabeça e com os dentes e a
língua…
Bem: depois de
sensivelmente 2h30 de viagem, tal como previsto, entramos no Cairo. Pelo
caminho fui falando com um rapaz que estava ao meu lado, esclarecendo algumas
dúvidas, etc., e foi quando ele me disse que se a minha intenção era ir
diretamente ao Museu Egípcio para estar lá na hora de abertura, o melhor era
sair antes de chegarmos à estação de Ramsis (na prática, o minibus nunca
chegaria a Ramsis, porque, segundo eu percebi depois de ele andar às voltas durante
uns vinte minutos, ele não tinha licença para ir mesmo até Cairo…). Foi o que
fiz: a certa altura o minibus parou por cima de um viaduto de onde era
perfeitamente visível, lá em baixo, umas centenas de metros mais à frente, o
edifício rosa do Museu Egípcio, e também o rio Nilo, ali logo em baixo, à
direita. O rapaz disse-me que era ali, e eu apeei. Imediatamente vi uma escadaria
que ligava o viaduto à rua de baixo. Desci rapidamente, e vi logo, do outro
lado da estrada da marginal, à minha direita, o balcão gradeado sobranceiro ao
Nilo; entusiasmado, galguei a estrada em duas passadas para vê-lo. E ali estava
ele, largo, frondoso, a perder de vista; cheio de história, berço e alimento de
uma civilização única, incomparável, que durou (dizem as teorias mais
conservadoras) mais de três mil anos, e é ainda hoje fonte de vida para
centenas de milhões de pessoas em mais de dez países. Eram cerca das 8 da
manhã.
Rio Nilo - foto tirada à chegada ao Cairo |
Dali fui
rapidamente para o Museu Egípcio. Contornei o edifício para chegar à frontaria,
de onde se vê, umas centenas de metros mais à frente, a famosa Praça Tahir –
centro administrativo do Egipto, famosa sobretudo pela revolução de junho de
2011. Depois de passar uns quantos gradeamentos postados na praça defronte ao
museu, com polícias aqui e ali, sorridentes e bem sentados, e de finalmente
perceber como atravessar aquele labirinto, lá cheguei à zona demarcada por
marcos negros espetados no chão, onde é suposto os visitantes fazerem fila, paralela
à grade adjacente ao alto portão negro gradeado da entrada. Fui o primeiro, mas
não demorou muito até estar acompanhado por outros turistas de muitos países,
sobretudo vindo em grupos de escursão.
Também não demorou muito até que um
conjunto – suponho, já quase “residente” – de “guias” se acercassem de nós
oferecendo os seus serviços como guias do museu, falando várias línguas,
exibindo o seu conhecimento acerca da história egípcia e suas antiguidades, e
alguns já avançando com outras propostas de “tour”, e pacotes especiais e isto
e aquilo… Aliás, o que não falta no Cairo são ofertas de escursões e “tours” à
medida, a maioria consideravelmente barata, sobretudo para bolsos ocidentais.
Vai-se a andar na rua e não faltam grandes e pequenas agências, e gente e
abordar-nos nos passeios para oferecer este ou aquele tour, seja um dia inteiro
a visitar as pirâmides de Guiza, Sakara e Dashour, seja um cruzeiro no Nilo,
etc. etc. A rede é imensa, e pelo que me parece toda a gente faz parte dela, e
trabalha para ela, direta ou indiretamente: hóteis, condutores de táxi, guias
oficiais e oficiosos, etc.
Museu Egípcio |
E o que é certo
é que muitos turistas, ali à entrada do museu, aceitaram ser “guiados”, em
grupo ou individualmente, por estes “guias” oficiosos; e parece-me, pelo que
pude ver, que foram bem servidos, porque alguns destes guias pareciam mesmo
entender do assunto (claro que sempre nos moldes da ortodoxia académica ou
“mainstream” da história egípcia), e por isso certamente que alguns turistas
ficaram muito mais esclarecidos do que eu, que preferi “guiar-me” sozinho pelo
meio de todas aquelas inúmeras maravilhas, e na maior parte do tempo parecia um
pouco como o “burro a olhar para um palácio” – isto é, abismado, mas a perceber
muito pouco ou nada. E isto assenta, a meu ver, num dos problemas fundamentais
deste museu; mas já lá irei.
À espera da abertura do museu. |
Às 9 abriu as portas.
Depois de passar pelo detetor de metais (eu e a mochila), dirigi-me à
bilheteira. Primeiro problema, que eu para ser sincero já previa há muito: o
preço do bilhete é de 75
libras , 15 libras acima do preço tabelado oficialmente
nos principais sites de turismo do Egipto, e, o que é bem mais grave, do preço que
o posto de turismo de Alexandria me confirmou mais do que uma vez (60 libras ), depois de eu
lhes ter perguntado se a tabela de preços disponível no site touregypt.com estava
atualizada. Inclusive, disseram-me no posto de turismo que podia encontrar a
mesma tabela e o mesmo preço (60
libras ) no site oficial da Autoridade Egípcia para o
Turismo (egypt.travel.com).
Ou seja, as
autoridades do turismo simplesmente não atualizam a tabela de preços das
entradas nos monumentos e museus, e continuam sistematicamente a informar mal
os turistas, como eu pude confirmar em todas
as minhas visitas no Cairo. Vejamos: entrada no Museu Egípcio – preço oficial
tabelado, 60 libras ;
preço real, 75 libras ;
entrada Planalto de Guiza (Pirâmides e Esfinge) – preço oficial tabelado, 60 libras ; preço real, 85 libras ; entrada
pirâmide de Khufu (que não visitei por falta de tempo, mas está para breve) –
preço oficial tabelado, 100
libras ; preço real (pasme-se), 200 libras ! (o dobro).
Este é só um dos problemas que tornam o Egipto pouco “amigo do turista” (pelo
menos do turista pobre que não vai em tours à medida e escursões, e que tem de
organizar por si as suas deslocações, fazer por si as suas marcações, ir por
sua conta e risco); vale-lhes a imensa e incalculável riqueza histórica,
cultural e patrimonial deste país, que continua e continuará a atrair centenas
de milhares de turistas todos os anos, até ao fim do mundo, apesar de tudo.
Comprado o bilhete,
e depois de uma pequena divagação pelo pátio exterior do museu, onde se
encontram várias estátuas, obeliscos e estelas em exposição, lá entrei. Pelas
regras do museu enunciadas num quadro no hall de entrada, percebi imediatamente,
para minha grande desilusão, que não podia tirar fotografias (segundo
problema).
Devia ter previsto, pois aconteceu-me o mesmo nos museus de Alexandria,
tanto no de Antiguidades, dentro da Bibliotheca Alexandrina, como no Museu
Nacional. Percebe-se que esta é política comum, que vem do topo. O propósito…
bem, podemos especular: por um lado, para evitar que se façam réplicas das
peças a partir das fotos; por outro lado (e esta parece-me a razão mais
plausível), porque as autoridades que gerem o turismo e antiguidades devem achar
que, se as pessoas tirarem muitas fotos, vão mostrá-las, exibi-las, e
publicá-las em sites, blogs e redes sociais, o que vai fazer com que o número
de visitantes do museu diminua; pois se as pessoas podem ver as peças por foto
e de graça, para quê ir ao museu? Não me admira que esta seja a principal
razão, dado que me parece que é sobretudo assim que as autoridades encaram o
seu próprio património histórico: menos como uma fonte de cultura e ilustração,
ao serviço de todos, e mais como uma inesgotável fonte de rendimento, um
“petróleo” cultural que é preciso fazer render a qualquer custo. Perguntem ao
Louvre se perde visitantes por permitir tirar fotos a tudo e em qualquer parte…
Estátua do deus Hórus, umas das muitas peças expostas no pátio exterior à entrada do Museu |
O museu, há que
dizer, é extraordinário, acima de tudo pelo que contém, não tanto pelo modo
como está organizado. Desde logo, o acervo é, ele próprio, à escala monumental:
cerca de dois milhões de peças, e mais sempre a chegar, organizadas pelas três
“idades” principais da civilização egípcia: Império Antigo, Império Novo e Império
Tardio (da dinastia ptolomaica à invasão romana), contando também com o pequeno
interregno de 17 anos do reinado de Akhenaten, a que se convencionou chamar de
“Período Amarniano”. Isto só no primeiro piso!
Está lá (quase
tudo): a estátua de Khefren (filho de Khufu) com mais de 4 mil anos, negra e
extraordinariamente polida, à escala humana, com Hórus representado por um
falcão assente por detrás da cabeça do rei, de asas abertas, como que a
“abençoá-lo”; a estatueta de sete centímetros que representa Khufu, pai de
Khefren e – suposto, nunca é demais
repetir – construtor da grande pirâmide, para servir como seu túmulo - embora
nunca, jamais, em qualquer das três pirâmides de Guiza, se tenha encontrado
qualquer túmulo, múmia ou inscrição funerária alusiva a qualquer um dos três
supostamente lá enterrados (Mikerinos, Khefren e Kheops); entre tantas outras
riquezas de valor histórico e cultural incalculável, quase sinto necessidade de
colocar o prefixo “inúmeros” em cada um dos tipos de peça: inúmeros-grandes
túmulos, inúmeros-sarcófagos, inúmeras-estátuas e estatuetas, inúmeras-estelas,
inúmeras-inscrições hieroglíficas, inúmeros-pequenos vasos, potes e taças em
alabastro, em mármore, em granito rosa e negro, etc. E todas elas (em
particular as respeitantes ao Império Antigo, o que é curioso) de uma
perfeição, de um rigor estrutural, de um sentido de propósito, passíveis de
deixar em estupor qualquer engenheiro, arquiteto, escultor ou artesão dos
nossos dias, e que tornam bastante duvidosa – senão mesmo absurda – a ideia de
que os antigos egípcios não possuíam qualquer tipo de maquinaria (electrónica
ou de outro tipo), e faziam tudo a martelo e cinzel. Os pequenos vasos, taças,
potes, garrafas e outras pequenas peças “continentes” esculpidas em pequenos blocos
de alabastro, mármore, granito, etc., são disso exemplo paradigmático:
expliquem-me como se esculpe, nestes materiais de dureza superior,
circunferências perfeitas, gargalos sem falhas, e interiores bojudos
perfeitamente simétricos, às vezes de raio superior ao gargalo, apenas com
martelo, cinzéis e outros instrumentos rudimentares... Expliquem-me como se
esculpe, apenas com estes instrumentos rudes, as faces exatas e simétricas de
uma estátua, de tal forma que quatro mil anos depois ainda se lhe vê o sorriso,
o polimento está intacto, e o brilho não se perdeu.
E a quantidade e
complexidade imensa dos hieróglifos e símbolos, associados em inscrições
intermináveis que cobrem paredes inteiras de túmulos e rolos de papiro com
dezenas de metros de extensão; a perfeição, o rigor, a simetria com que eles
estão inscritos na pedra ou no papiro, repetindo e reformulando fórmulas
simbólicas de acordo com regras e princípios precisos, contendo significados
que até hoje apenas traduzimos imperfeita e parcialmente; não consegui – e
creio que ninguém consegue – deixar de sentir intimamente que está ali a
expressão de uma sólida, vasta, antiga e bem estabelecida “ciência”, pouco
compatível com a ideia de uma civilização rudimentar que está a dar os
primeiros passos nas artes da civilização... Simplesmente é tudo demasiado
competente. Se não fosse por tudo isto, as pirâmides e a esfinge de Guiza
seriam, a meu ver, prova mais do que suficiente de que isto não é assim.
Várias peças são
impressionantes neste piso; a pequena exposição dedicada ao Período Amarniano
impressionou-me particularmente, em grande parte porque a história do reinado
de Akhenaten, o “rei herético”, é por si só impressionante e tem o seu quê de
romântica (Akhenaten foi o pai do mais famoso dos faraós, Tutankaten, cujo nome
haveria mais tarde de ser alterado para Tutankamon, após a morte de Akhenaten e
o falhanço da “revolução” religiosa amarniana). Todas as representações de
Akhenaten são intrigantes, sobretudo pela sua compleição física muito pouco natural:
face e membros esguios e alongados, caixa craniana de volume e comprimento
superior ao normal (característica que alguns dos seus filhos, também
representados em estatuária, haviam de herdar), anca e coxas largas de mulher,
ausência de órgão sexual masculino (em algumas estátuas é representado nu da
cinta para baixo). Vemos isto principalmente nos quatro impressionantes
colossos expostos deste faraó.
Esta época viu
emergir uma forma inédita e única de naturalismo artístico, que não voltou a
repetir-se em toda a história da civilização egípcia; uma arte com “rosto
humano”, liberta do formalismo e rigidez da anterior religião de Amon, e que
permitia, por exemplo, que a família real (Akhenaten, Nefertiti e filhos) fosse
representada, em estatuária e em relevos, em plena convivência familiar ou em troca
de afetos (é especialmente interessante uma estátua de Nefertiti a beijar o
filho pequeno na boca).
Há uma alegria
“edénica”, luminosa e “solar” que transparece nos relevos e figurações deste
período, que exprime bem a nova religião adoptada em Tel El Amarna (a
cidade-capital fundada por Akhenaten) que consiste numa constante adoração-celebração
do deus-sol (Aten), deus único que é fonte de vida inesgotável para todos os
seres, sem considerações de casta ou nível social (segundo dizem, a primeira
religião monoteísta da História).
Com efeito neste
piso todas as peças são impressionantes, mas por vezes estão dispostas de forma
algo atabalhoada, umas atiradas para o meio dos corredores, outras encostadas às
paredes, outras meio escondidas por detrás de outras peças, ou em áreas e
recantos esconsos, sem que se perceba uma razão, um fio condutor. É verdade que
a quantidade de peças é imensa, e há novas sempre a chegar, mas isso não
justifica que tantas peças estejam atabalhoadamente expostas…e por etiquetar. É
um pouco difícil para o visitante seguir uma linha orientadora; a maior parte
do tempo anda-se aos zigzagues (como eu). E quanto à falta de
etiquetagem/descrição, parece-me um defeito realmente grave do museu, inclusive
porque afeta até algumas das peças mais emblemáticas. Sim, é verdade: as peças
estão ali, pousadas, mas é impossível saber o que representam, a idade, a
origem, nada (algumas parece que já tiveram uma; pelo menos têm lá a plaquita
que parece ter sido uma etiqueta, em tempos). E neste ponto damos de caras com
a questão do “burro a olhar para um palácio”, que bem descreve a minha situação
em diversos momentos. Ora, é verdade que em parte a culpa é minha; quer dizer,
eu até tinha lido e estudado mais, se houvesse informação disponível sobre as
peças (no site do globalmuseum só encontrei a descrição de 10 ou 15 peças, no
máximo); mas também é verdade que 1) não sou obrigado a contratar um “guia”
oficial ou oficioso para me “guiar” dentro do museu; 2) não sou obrigado a
comprar um catálogo do museu para conhecer as peças, até porque é mais caro o
catálogo do que a entrada no museu (100. Sim, 100 libras é o preço do
catálogo. Perguntei só por curiosidade…); 3) não sou obrigado a estudar as
peças com antecipação, porque uma das obrigações “públicas” de qualquer museu
é, não apenas expor, mas informar. Segue-se, por conseguinte, que é obrigação
do museu (de qualquer museu, aliás) etiquetar devidamente as peças expostas,
para que o visitante fique com um conhecimento mínimo daquilo que está a ver. A
não ser…
Claro, é
evidente: está tudo feito para o negócio dos “guias”, dos “tours” e dos
catálogos. Quanto menos o visitante souber, mais depressa recorrerá a um guia,
mais depressa se lançará a comprar um livreto ou catálogo. Na prática, paga 75 libras só para ver as
peças, e mais um tanto ou o dobro desse tanto para perceber minimamente o que
está a ver. Aqui se vê onde pára o ideal de ilustração e serviço público…
Vamos ao segundo
piso, quase todo dedicado ao acervo de peças do túmulo de Tutankamon, descoberto
no Vale dos Reis. Percebe-se, ao ver as peças, o porquê da descoberta do túmulo
do faraó-criança ter gerado tanto fascínio a nível mundial, e ter tornado a
figura de Tutankamon tão icónica e popular. É que, em primeiro lugar, todas as
peças, desde o sarcófago, à máscara funerária, passando pelos objetos pessoais do
faraó, não só foram primorosa e ricamente manufaturados e trabalhados, como
estão em extraordinário estado de conservação (parece que vieram ontem da
fábrica ou da oficina…). A banha de ouro reluz por toda a parte: é nos pequenos
tronos, é na cama da criança, é nos acessórios funerários, é no carro de
combate, é nas enormes “caixas” funerárias que ocupavam o túmulo, etc. É
extraordinária a quantidade de objectos de todo o tipo que foram encontrados
neste túmulo, mais do que suficientes para só por si encherem um museu.
Em segundo
lugar, a maior parte dos objetos pessoais do rei, sobretudo se pensarmos que
pertenceram a alguém que acima de tudo foi uma criança com uma história triste
e um fim trágico, despertam-nos um sentimento de ternura e estimulam a
imaginação. Falo das pequenas sandálias de pergaminho, quase intactas; das
caixinhas de jogos em marfim (quase que conseguimos imaginar a pequena criança,
morena, de crânio rapado, a jogar o seu joguito em silêncio, antes de ser
chamada a presidir a mais uma cerimónia longa e chata de gente adulta); falo de
um busto muito vivo, expressivo e sorridente do pequeno rei, que contribuiu
para dar espessura e personalidade humana ao mito; e muitos, muitos outros dos
quais já não me recordo; então se falarmos dos objetos rituais, é um sem fim
deles.
Outro problema
do museu: as múmias. Um dos principais motivos que me trouxe ao Museu Egípcio
foi ver de perto a múmia de Ramsés III, e também de Tutmósis, que durante
décadas foram das principais atrações deste museu. Não estou certo de como era
antigamente, mas sempre tive a ideia de que as múmias sempre estiveram expostas
na ala geral, lado a lado com as restantes peças do museu. Talvez esteja
enganado, mas era a ideia que tinha. A verdade, para minha desilusão, é que
estão expostas numa ala especial, cuja entrada custa basicamente um segundo
bilhete: 75 libras !
Como digo, não estou certo se foi sempre assim ou não; mas se por acaso é
verdade que elas foram movidas para uma ala especial que exige o pagamento de
um segundo bilhete… estamos falados.
Terminadas as
voltas e os zigzagues pelo segundo piso, desci ao primeiro. Dei mais uma
espreitadela em algumas peças que não tinha visto ainda, sobretudo na ala intermédia,
em frente ao hall de entrada. Depois dirigi-me à saída (que fica no lado
direito do edifício), voltei a passar a mochila pelo detetor, e saí. Era por
volta do meio-dia, e o sol batia forte, agressivo, moendo a carapinha (que vale
eu tinha o meu super-chapéu).
2ª parte – Check-in no hotel; Compra bilhete para Luxor
Depois de
almoçar rapidamente meia dúzia de bolachas energéticas na esplanada do café
situado no pátio exterior do museu, finalmente saí pelo portão principal. Eram
cerca das 12h30. O meu objetivo seguinte era o de ir à estação rodoviária de Al
Maza comprar os bilhetes de camioneta para Luxor, pois tencionava visitar a
cidade daí a três dias, e não queria correr o risco de chegar ao dia e não ter
bilhete nem de ida nem de volta. No posto de turismo de Alexandria tinham-me
dito que esta estação ficava perto de Ramsis, a estação central do Cairo (creio
que me falaram em “5 minutos de carro”). Convencido disso, pensei que podia
facilmente ir a pé, ou quem sabe apanhar o metro para lá (o Cairo tem metro
subterrâneo). Do museu andei umas centenas de metros até à praça Tahir, só para
lhe sentir o pulso histórico e tirar uma ou duas fotos, e depois atravessei a
estrada para o lado do passeio que contorna a praça e comecei a perguntar às
pessoas onde ficava a estação de Al Maza. Perguntei a um rapaz que inicialmente
me abordou para me propor um “tour” qualquer, que devia trabalhar oficial ou
oficiosamente para uma das agências que existem nessa rua, loja sim loja não.
Afavelmente, respondeu-me que eu tinha de ir primeiro à estação de camionetas
que ficava por detrás do Museu Egípcio, debaixo do viaduto onde eu tinha apeado
nessa manhã, e perguntar se a camioneta que vai para o aeroporto do Cairo
passava em Al Maza. Ou seja, mais complicado do que eu pensava.
Como estava
muito calor e o sol atestava, decidi ir primeiro ao hotel fazer o check-in e
tentar a minha sorte mais tarde. O meu receio era apenas que a estação de Al
Maza fechasse demasiado cedo, e nesse dia eu já não fosse a tempo de comprar os
bilhetes. Chegado ao pequeno hotel, que fica numa das ruas que irradia a partir
da praça Tahir, e depois do check-in, liguei para a estação de Al Maza e pedi
por favor ao rececionista idoso que falasse com quem quer que o atendesse para
confirmar a hora de fecho da bilheteira (nas minhas próprias tentativas
anteriores de contacto, ou não me atendiam, ou quando atendiam e percebiam que
eu falava inglês desligavam-me a chamada). “Open 24 hours”, disse-me o
rececionista, depois de uma conversa rápida com alguém do outro lado da linha. “Great!”,
respondi; ainda tinha tempo.
Fui para o meu
quarto, amplo e com duas camas, mas muito quente, fiz uma curta sesta, tomei um
banho gelado (água quente, nem vê-la) e voltei a sair. Como ainda era cedo e
hora de muito sol e calor (por volta das 15h), sentei-me no pequeno lobby do
hotel a fazer horas e a enviar mensagens pela net à família. É um hotel muito
simples, de duas estrelas, mas muito bem localizado e com mais de sessenta anos
de história. Não tem mais de três pisos, e a receção situa-se no sétimo andar
de um edifico com a mesma idade ou superior, com uma entrada muito larga que
parece a de uma antiga garagem ou coisa que o valha. O elevador também é muito
antigo, e não parece muito seguro, o que como é óbvio me deixou de respiração
suspensa do primeiro ao último segundo das minhas ascensões e descensões. E
quando perguntei ao vigilante onde eram as escadas, já com a intenção de subir
por lá… “Estão fechadas”, responde-me com a maior das naturalidades… Sim, as
escadas, que são também de emergência, suponho, estavam fechadas, atravancadas,
eu sei lá…
Isto para dizer
que o hotel é antigo, que todos os seus traços, paredes, soalho, e até os
quadros nas paredes, transpiram influências coloniais francesas, e
provavelmente britânicas. Como todas as coisas muito antigas que já viveram
tempos mais felizes e áureos, tem um pouco o ar nostálgico de ruína. Mas, pelo
menos no que diz respeito à internet wi-fi, soube atualizar-se.
Por volta das
16h estava na rua, e dirigia-me à estação de camionetas por detrás do museu,
tal como o rapaz da agência me havia indicado. Perguntei a um homem que devia
ter os seus sessentas e muitos, sentado perto de um pequeno quiosque, e que
devia ser algum tipo de funcionário ou vigilante da estação, qual das
camionetas ia para Al Maza. Não falava inglês, mas percebeu o sentido da minha
pergunta e imediata e afavelmente pediu que me sentasse a seu lado, pois a
camioneta que eu pretendia devia estar para chegar. Chegou; era o 1007.
A viagem até à
estação de Al Maza demorou pelo menos uma hora. A estação, situada na beira de
uma estrada, não era mais do que um espaço amplo ao ar-livre, cortado por filas
de quiosques tipo contentor, que serviam simultaneamente de bilheteiras e
escritórios. Apeei e dirigi-me a um dos contentores para perguntar onde podia
comprar bilhetes da Superjet, a empresa de camionetas que tem rotas não só para
Luxor, mas também para o Cairo, Alexandria, e outras cidades. Disseram-me que
ficava noutra fila de contentores mais à frente; dirigi-me para lá, e
finalmente encontrei um quiosque-bilheteira, encimado por uma banda
publicitária da Superjet, que mais parecia vender coca-cola que bilhetes. Depois
dos costumeiros atropelos na curta fila (chamar-lhe “fila” é abusivo; cá, em
qualquer sítio, é perfeitamente normal as pessoas passarem à frente umas das
outras), cheguei-me à frente para comprar o bilhete, mas o funcionário parece
ter ficado muito admirado e admoestado por me ver; estava ali no meio de uma
discussão qualquer que eu fui interromper, suponho, muito mais importante que a
minha pretensão de cliente. “Good afternoon”, digo eu, fórmula que uso
simultaneamente para me anunciar e para declarar, sem mais delongas, que não
falo arábico. O homem faz uma expressão do tipo “que é que tu queres?”, como se
não fosse normal as pessoas irem ali comprar bilhetes, e pergunta, num inglês
esforçado mas num tom desagradado, como quem foi incomodado, “What do you
need?”. “What do you need?!?”, respondo eu devolvendo a pergunta; “I need
tickets!”. A conversa revelou-se difícil, porque ele praticamente não falava
inglês (“fifty-fifty”, disse ele) e era mais do que evidente que o senhor
queria era despachar-me rapidamente. Tentei explicar-lhe que queria um bilhete
de ida para dia 13, sábado, e outro de volta para dia 15, terça-feira. Quando
ao primeiro, tudo bem; lá me explicou que havia bilhete para sábado, mas com
partida às 22h e chegada às 7h, o que eu já sabia. Mas quando lhe repeti que
queria comprar também o bilhete de volta, imediatamente me respondeu num tom de
grande impaciência que só podia comprá-lo em Luxor… Ou seja, depois de chegado
a Luxor, após dez extenuantes horas de viagem de camioneta, é que eu podia
saber se teria ou não bilhete para voltar no dia a seguir…
Embora eu
quisesse muito ir a Luxor - em particular para visitar o extraordinário e
intrigante Templo de Luxor, e talvez Karnak -, não podia dar-me ao luxo de ir
sem ter a certeza de que podia voltar na data prevista. Uma noite a mais de
hotel faz diferença para o “turista pobre” que anda com o dinheiro todo
contado. Além do mais, no dia 15 ou 16, segundo tinha sido informado pela
AIESEC, teria mudar de casa, pelo que não me podia dar ao luxo de voltar depois
desse dia (vinha aí uma nova semana de adaptação, a pouco mais de 15 dias de
voltar para Portugal…). Na viagem de regresso ao Cairo vinha a magicar como
raio é que eu podia ter a certeza de que poderia comprar o bilhete de volta em
Luxor…
Ora: no bilhete de
ida estava escrito um número de informações da Superjet, em arábico
(naturalmente). Uma vez chegado ao hotel, pedi ajuda uma vez mais, mas desta
feita a outro rececionista; pedi que ligasse para esse número e perguntasse se
eu podia estar certo de ter bilhete de volta para dia 15, se, uma vez chegado
na manhã do dia 14, o comprasse imediatamente na estação de Luxor. Ele ligou,
trocou meia dúzia de palavras com alguém do lado de lá, e desligou. Disse-me
que sim; decididamente podia comprar o bilhete lá, desde que o fizesse
impreterivelmente à chegada na manhã do dia 14, domingo. Mas como estar
absolutamente certo?
Como se verá, no
fim desta viagem de dois dias ao Cairo, e ponderadas todas as variáveis, acabei
por deixar cair a viagem a Luxor. Mais à frente perceber-se-á melhor o porquê.
O dia já ia
muito longo (e também já vai muito longa esta narrativa). Enquanto jantava quatro
ou cinco fatias de pão Baladi no
quarto de hotel, compradas num mercadito lá perto, comecei a preocupar-me
seriamente com o modo como haveria de chegar ao Planalto de Guiza (Pirâmides)
na manhã do dia seguinte. Nessa manhã, o rapaz que eu conheci no minibus que me
levou ao Cairo disse-me que havia uma estação de metro em Guiza, e que daí
podia apanhar um minibus por duas ou três libras até ao Planalto. Mas, uma vez
mais, como ter a certeza? Umas vezes dizem que é perto quando é longe; outras
vezes longe quando é perto... Nunca se pode estar absolutamente certo. E quando
se está sozinho pela primeira vez numa cidade tão grande (o Cairo é
simplesmente gigantesco; cabem, disseram-me, quatro Alexandrias, e Alexandria
já é grande o suficiente para nele caberem cerca de quatro milhões de
habitantes…), a incerteza é maior ainda. E depois das estopadas deste primeiro
dia, a pé, de minibus e de autocarro, começou a parecer-me pouco sensato palmilhar
a pé e de transportes todo o caminho que vai do centro do Cairo ao subúrbio
periférico de Guiza, a dezenas de quilómetros do centro, correndo um sério
risco de me perder e chegar lá depois da hora de abertura, ou de chegar lá tão
esgotado que não fosse capaz de apreciar devidamente aquelas maravilhas.
Nesse sentido, a
proposta que umas horas antes, ao check-in, o rececionista fez de me
disponibilizar um condutor do hotel para me levar e trazer de Guiza, e que eu
na altura prontamente recusei, começou agora a parecer-me bem mais tentadora. Afinal,
o que são 20 dólares (150
libras , cerca de 17 euros) para se ser levado e trazido
de volta, a tempo e horas, sem desvios, sem desorientação, sem desperdícios de
tempo e energia, sobretudo quando está em jogo a visita de uma vida, com a qual
se sonhou e pela qual se esperou tanto? Cheguei a pensar: e se simplesmente
apanhar um táxi na rua que me leve lá, não será mais barato? Depois percebi que
não, visto que eles cobram ao quilómetro, pelo que quase de certo me ficaria
mais caro.
Vesti-me e
dirigi-me à receção, decidido a saber mais informações (sou muito desconfiado).
O rececionista confirmou que sim, que de facto têm um motorista que trabalha
para o hotel, e que o preço total para ser levado e trazido de Guiza era de 150 libras . O motorista
deveria levar-me lá, esperar por mim lá, e trazer-me de volta. Se eu aceitasse
teria de fazer o pagamento imediatamente, e diretamente ao hotel, que depois
contactaria o motorista a solicitar o serviço e a confirmar a hora a que me viria
buscar de manhã. Finalmente aceitei; o rececionista ligou para o motorista e
confirmou a hora: 8h15. Fui ao quarto buscar o dinheiro, paguei e pedi um
recibo, como de costume. Mas… por qualquer razão que nunca cheguei a entender
bem, o rececionista não me queria dar recibo! Subitamente, o verniz daquela
simpatia e solicitude quebrou-se ao meu pedido. Porquê? “No receipt”, disse
ele. Creio que ele ficou confuso, pois só passam recebidos das dormidas, mas
sendo o serviço de motorista prestado pelo hotel, argumentei eu, tinha de me
passar recibo! Quando eu já estava pronto a pedir o dinheiro de volta, entra
outro colega na receção, o tal que me tinha ajudado umas horas antes com a
chamada para Luxor. Este, quando percebeu a minha exigência, trocou umas
palavras com o colega como quem diz “passa-lhe o recibo!”; este, meio
contrariado, já meio esfumada a simpatia inicial, e sem me olhar nos olhos, lá
escrevinhou no papel do recibo qualquer coisa como “Trip receipt – 150 pounds ”, e
entregou-mo. Para quê complicar??
Eu percebo:
estas coisas não são feitas de modo oficial, mas de modo “oficioso”, tudo entre
amigos. Recibos e registos para quê?
Antes de ir para
o quarto ainda fiquei uns instantes na receção, a folhear alguns dos livros e
revistas em inglês e francês que constituem a pequena livraria do hotel, e que
se foram empilhando ao longo de anos de esquecimentos, abandonos, e ofertas
quem sabe, dos muitos clientes que por lá passaram. Estava muito cansado, mas
ao mesmo tempo inquieto; não me apetecia ir já fechar-me naquele quarto fechado
a abrasado. Depois lá acabei por ir.
Finalmente,
depois de mais um banho de água fria (com o calor até sabe bem), fui-me deitar.
Os acontecimentos do dia, a incerteza, tudo isto dançava na minha cabeça e
mantinha-me desperto. Tentei focar-me no principal: na manhã seguinte, se deus
quisesse, iria finalmente ver as pirâmides de Guiza com os meus próprios olhos,
e estar face a face com a Esfinge.
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