Quinta-feira, 11 de junho de 2015
1ª parte –
Visita ao Planalto de Guiza (pirâmides e esfinge)
Eis que chega a
manhã tão esperada. Às 7h30 estava a subir ao piso do restaurante para tomar o
pequeno-almoço. Uma sala não muito ampla, com meia dúzia de mesas cobertas com
toalhas vermelhas; só estava mais um cliente, egípcio pareceu-me. O empregado
trouxe o café e o leite, e um prato com dois pães longos e um pacotinho de
queijo (suponho) para barrar, e um de compota. Barrei o queijo no pão, mas não
gostei; pedi mais um pão e comi a seco, molhado no café; o pão era doce, por
isso soube bem na mesma.
Despachado desci
à receção e esperei pelo motorista. À hora prevista (8h15), o rececionista
idoso, que depois percebi fazia também as funções de valet e concierge, chamou-me
e acompanhou-me, no seu passo lento, até ao elevador. Descemos juntos. Na rua, “entregou-me”
ao motorista, que pelo carro percebi imediatamente que era apenas um taxista
que fazia uns trabalhos para o hotel, quando solicitado e sempre que podia.
Partimos em
plena hora de ponta no Cairo. Pelo menos no centro da cidade, o tráfego parece mais
organizado que em Alexandria (como aliás quase tudo; não se vê tanto lixo nas
ruas, e há passadeiras e semáforos em quantidade considerável). Mas estou certo
que afastando-nos um pouco do centro, em particular nos subúrbios mais
periféricos, as coisas serão bem diferentes.
Moses (era assim
que se chamava o motorista) começou a entabular conversa comigo, a perguntar de
onde era, o que fazia no Egipto, o costume. Ofereceu-me um cigarro; agradeci
mas respondi que não fumava de manhã, mas que mais para a tarde, depois da
volta em Guiza, era capaz de aceitar. A certa altura entramos na estrada da
marginal, e fomos seguindo, com o vasto Nilo à nossa direita. Moses, sempre
muito simpático e solícito, disse que íamos passar num sítio fantástico, de
onde eu poderia tirar uma “great picture” do Nilo; porque ele, Moses, estava
ali para me proporcionar grandes oportunidades fotográficas, e um dia inesquecível.
Não se fartou de o repetir, aliás, durante toda a viagem até Guiza. Eu, que
tinha o meu objetivo bem traçado, e não estava para desvios de última hora nem
para chegar atrasado à abertura do Planalto, respondi que só queria que me
levasse a Guiza, e nada mais. Mas, de facto, neste ponto, Moses estava certo: a
dado momento viramos à direita e entramos numa larga ponte-autoestrada que
atravessa o rio. A vista, do cimo da ponte, era realmente extraordinária. Lá lhe
pedi que encostasse o carro, e apeei. Do miradouro via-se o Nilo, muito largo,
correndo lenta e pesadamente como se lhe pesassem os milénios, ou como se de
tão antigo se tivesse tornado indiferente ou superior ao próprio tempo. Ao
longo da margem, à direita, até perder de vista, viam-se prédios altos, como
gigantes alinhados que fossem beber ao rio. Ao longo da margem, à esquerda,
quase não se viam prédios altos, mas pequenos prédios residenciais sem acabamentos,
ainda na “carne viva” do tijolo. De uma margem para a outra, que diferença
curiosa... Tirei não uma mas três fotos, olhei novamente, e voltei para o
carro.
Uma das fotos do Nilo captadas do cimo da ponte |
Andamos mais uns
quarenta e cinco minutos, e dos dois lados da estrada iam surgindo cada vez
mais e mais destes bairros de tijolo, de subúrbio; nada que se comparasse ao
centro do Cairo (ver foto 2).
De repente, após
uma curva ligeira, surgem lá muito longe, no horizonte recortado dos prédios,
as figuras alvas, ainda meio inseguras, como que pintadas a marca de água, de
duas montanhas muito exatas, em forma de pirâmide – eram as duas pirâmides maiores,
a de Khefrén e a de Khufu, lá muito longe! Finalmente!, nem queria acreditar…
Via-as com os meus próprios olhos, pela primeira vez!
Comecei a ficar
realmente emocionado e excitado (sim, excitado é a palavra certa); sentia-me como
uma criança que está a chegar ao parque de diversões...
Finalmente
entramos no subúrbio de Guiza, com as suas casas baixas e inúmeras estalagens
de estrada, pequenas lojas, e estradas poeirentas. Parece uma daquelas cidades pequenas
do faroeste americano que vemos nos filmes. O deserto está ali muito perto;
consegue sentir-se-lhe o peso, e ver-se-lhe os contornos, em particular a
partir do Planalto. Não admira; a partir dali, para sul, pouco mais há senão
deserto aberto durante centenas de quilómetros.
Viramos numa rua
em que fomos imediatamente “assaltados” por uns quantos rapazes, vindos de
todos os lados; dos passeios, da estrada, eu sei lá. Não sei se por terem
percebido que o carro levava um estrangeiro, não sei. Pela conversa do Moses
parece que sim. Não acredito que quisessem roubar, mas antes “assediar” (a
minha experiência, posta à prova em várias circunstâncias, diz-me que este povo
é incapaz de roubar, pelo menos às claras e de forma agressiva; no Islão o
crime de roubo é demasiado grave, e quem quer que seja visto a roubar é
severamente punido logo ali, pela justiça popular; a isto, devemos somar um
respeito quase reverencial pelo “estrangeiro”, a quem o Islão comanda o maior
respeito e hospitalidade; e isso sente-se quase sempre, em particular na
afabilidade e genuína bondade – quase ingénua – que se encontra na maioria das
pessoas).
Com efeito, o
“assédio” dos pequenos comerciantes e vendedores de “tours”, corridas de
cavalo, camelo, e outros, estava apenas a começar; haveria de durar
praticamente toda a visita, fora e dentro do Planalto de Guiza.
Depois entramos
numa zona que, segundo Moses, era mais policiada, e que distava poucas centenas
de metros da entrada do Planalto. Por fim, fomos estacionar numa zona muito ampla,
só com uma entrada, rodeada por pequenas estalagens, mercados, lojas de souvenirs,
etc. Apeamos, e Moses, ao invés de me dizer imediatamente onde ficava a entrada
do Planalto, onde eu ansiava por me dirigir rapidamente, fez questão que o
acompanhasse a uma dessas casas ou lojas onde já estava um amigo à espera, que
mal me viu, pronta e polidamente me saudou e convidou a entrar sem mais
delongas. Eu já sabia o que aí vinha, e comecei a ficar irritado e impaciente.
Então o homem
começou com a manteiga do costume (de onde vem, para onde vai, Portugal, ahh, o
Ronaldo!, bla bla bla…), e eu já com um pé fora da porta. Começou a falar-me
dos tours, e que me ia mostrar o mapa do Planalto para vermos a melhor opção de
“tour” para mim, e a mostrar-me fotos de outros turistas a darem beijos à esfinge
e não sei quê… Já farto daquilo, até porque tinha passado grande parte da manhã
a repetir ao Moses que QUERIA EXCLUSIVAMENTE QUE ME LEVASSE À ENTRADA DO
PLANALTO, respirei fundo e respondi mais ou menos isto, da forma mais assertiva
sem ser agressiva que consegui: “Listen, I don´t want any camel, or horse, or
tour, or whatever; I JUST WANT TO GO TO THE PLATEAU AND SEE THE PYRAMIDS, AS
SOON AS POSSIBLE!”. E nisto virei costas e saí; mas o homem ainda insistiu e
veio atrás de mim, “Sir!, Sir!, SIR!”, e eu, “Bye, bye… No, No, NO, Thanks but
NO… NO, NO, NO, Bye, Bye…..”, e em poucos segundos já estava longe.
Finalmente, vencido,
Moses lá veio comigo até à saída daquele perímetro, e indicou-me a entrada no
Planalto. Só tinha de virar ali à esquerda, seguir sempre e encontrava a
bilheteira.
Foto panorâmica do Planalto. Foi basicamente esta a minha vista à chegada. |
De seguida fui
para a bilheteira, em passo corrida, e já surdo a todos os “assédios” que iam aparecendo
no caminho, um atrás do outro. Comprei o bilhete (60 libras – preço
tabelado; 85 libras
– preço real; lembram-se?); dirigi-me à zona de acesso, onde não faltavam funcionários
“oficiosos”, rapazes e até crianças; quando dei por mim estava a ser
encaminhado por um destes “oficiosos”, um rapaz com os seus vinte anos, até ao
detetor de metais, onde depositei a mochila e a bolsa pequena; em segundos a
bolsa e a mochila estavam do outro lado, e um miúdo dos seus dez anos pegou
neles e ficou meio estarrecido com eles na mão, à espera não sei do quê, a
olhar não sei para quem, menos para mim; e eu, que ainda estava do lado de cá,
a passar eu próprio pelo detetor e a ser inspecionado pelo segurança, comecei a
ficar preocupado e não conseguia tirar os olhos da mochila e da bolsa, e não
via a hora de as tirar das mãos do miúdo, não fossem elas de repente ser “absorvidas”
por aquela massa de gente “oficiosa”, que pelos vistos trabalha ali, embora não
se entenda bem porquê, quem permite, e a que título.
E voltamos uma
vez mais à questão da falta de uma política “amiga do turista”. Parece tudo
meio sem lei, sem autoridade, sem regras, sem profissionalidade; que segurança
é que isto transmite a quem vem de fora?
Finalmente
estava do lado de dentro. Os “assédios” recomeçaram quase de imediato (corridas
a camelo, a cavalo, souvenirs, etc.), mas eu já estava imune e segui. Olhei em
volta, a pensar o que fazer primeiro. A esfinge estava ali do lado direito, a
umas dezenas de metros, mas parecia inacessível, rodeada por ruínas de templos,
e portões, e gradeamentos. Segui em frente pela estrada que sobe em direção às
pirâmides (o Planalto é sempre a subir, da esfinge em baixo às pirâmides lá em
cima). Inicialmente, pretendia saber como chegar à esfinge. Depois de subir
bastante, aproximou-se - mais um - condutor de camelos para me propor uma
corrida panorâmica em torno do Planalto; respondi que não e perguntei-lhe onde
era a entrada para o recinto da esfinge. Ao invés de me responder logo começou
a insistir na corrida, mas ao ver a minha impaciência lá me disse que tinha de
voltar para trás e virar à esquerda, lá em baixo.
Bloco superior do vão de entrada para o Templo da Esfinge. Só para dar uma noção da dimensão e da perfeição do talhe. |
Pátio interior central com arcadas "tipo stonehenge" |
É extraordinário
com o “céu casa com a terra” naquele pequeno pátio. As arcadas megalíticas
elevam-se muito direitas e ordenadas, como se pretendessem cumprimentar os
raios de sol que vêm do alto, comungar com eles, fundir-se com eles.
Ali o sol
projeta os seus raios generosamente, graciosamente, como um
deus que abençoa e que diz “Assim tudo está bem” (foto 6 e 7).
Sempre foi, aliás, esta a
função de qualquer templo digno desse nome: associar a “ordem de baixo” à “ordem
de cima”; abrir um espaço no mundo profano no qual a ordem sagrada pode ter
lugar, influir no mundo. Para esse efeito o próprio templo tem que respeitar a
ordem sagrada, ser construído de acordo com as regras e leis da “ordem
cósmica”, de modo a que a comunhão entre o céu e a terra possa de facto ter
lugar. “Em baixo, tal como em cima”, reza o primeiro princípio da sabedoria
alquímica; “Assim na Terra como no Céu”, rezamos nós.
Foto 6 |
Foto 7 |
Mais tarde ouvi
um guia dizer que tinha sido naquele pequeno templo que Khufu (ou Khefrén, já
não me recordo bem) tinha sido mumificado, antes de ser sepultado na pirâmide
com o seu nome. Era pelo menos isso que estava a contar a outros turistas. Tanto
quanto sei, não há quaisquer provas históricas de que isto tenha sido assim,
mas para a ortodoxia académica, em especial no Egipto, a história oficial
continua e continuará a ser a de que as três pirâmides maiores do Planalto
foram construídas por Khufu, Khefrén e Menkauré para servirem de túmulo a estes
três faraós, e naturalmente é a partir desse quadro teórico que se continua e continuará
por muitos anos a interpretar a função de outras estruturas associadas do
Planalto, mesmo que não existam provas suficientes que o sustentem.
A partir deste
pátio, curiosamente, sobe-se por uma rampa que vai dar a um outro pátio
sobranceiro à esfinge, perfeitamente alinhado com a pirâmide central (Khefrén),
a tal ponto que quem sobe a rampa consegue ver a pirâmide ao fundo, como que
emoldurada pelo vão da arco de entrada desse pátio, situado no fim da rampa.
Este alinhamento talvez esteja na base da ideia de que foi neste pátio central
que Khefrén foi mumificado, pois ele sugere que existe um relação estreita
entre este pequeno templo e a pirâmide central, e que pode ter sido por este
caminho que liga as duas estruturas que o corpo deste faraó foi transportado
até à sua morada final, após a mumificação.
Foto da rampa a descer |
Foto da rampa a subir. A pirâmide de Khéfren emoldurada pelo vão de entrada para o pátio da esfinge. |
Subi pela rampa,
atravessei o vão, entrei no pátio alto, e de repente tinha a esfinge do meu
lado direito, no recinto alguns níveis abaixo. Estava sozinho, mas não passou
muito tempo até que estivesse acompanhado por um pequeno grupo de turistas, não
percebi bem de que nacionalidade, acompanhados de um guia. Só tive pena de não
poder descer ao recinto para poder estar efetivamente “face a face” com ela,
qual Édipo dos tempos modernos. Também eu estava ali à procura da resposta ao
Enigma.
Mas ela não fala
muito. Continua, como sempre, em silêncio, de olhos fixos no horizonte-este de
onde o sol nasce todas as manhãs, como que indiferente à poeira das coisas
humanas, e ao próprio tempo. Continua refractária a qualquer pergunta, a
qualquer tentativa humana de desvendar o seu segredo. Como não sou especial,
não consegui melhor que nenhum outro antes de mim, e saí de lá sem a resposta
que queria. Fui lá duas vezes, e nem assim.
Esfinge vista a partir do pátio superior, com a Grande Pirâmide ao fundo |
É evidente:
somos nós, na nossa ambição humana, muitas vezes desmedida, que fazemos
perguntas demasiado ambiciosas ou demasiado mesquinhas, à procura de respostas
que ninguém a não ser nós próprios pode dar, com a nossa vida, as nossas
escolhas, o nosso esforço de aperfeiçoamento. Queremos que outrém que não nós nos
ofereça a chave da nossa própria vocação, da nossa liberdade, a chave que
desvenda o enigma que cada um é para si próprio.
Mas ela parece dizer, do alto da sua indiferença, “Quem sou eu para responder à tua ambição? Procura dentro de ti próprio; esforça-te!”. Ou como diz o adágio antigo, “Conhece-te a ti mesmo”.
Mas ela parece dizer, do alto da sua indiferença, “Quem sou eu para responder à tua ambição? Procura dentro de ti próprio; esforça-te!”. Ou como diz o adágio antigo, “Conhece-te a ti mesmo”.
Mas ela fala de
um outro segredo maior e mais importante, e é esse que interessa: qual a sua
real função? Qual o propósito que serve, no contexto das restantes estruturas
do Planalto? Quem representa? Será aquela face a de Khufu, como defende o
“mainstream” académico? Será apenas a representação do rei em toda a glória da
sua força e poder (daí a cabeça humana em corpo de leão), contemplando o seu
próprio renascimento no horizonte-este, como um deus-sol que venceu a noite do Duat (i.e., a morte, a aniquilação
eterna)? Ou será que, tal como defendem investigadores mais heterodoxos (como
Bauval, Hancock, West e outros) a esfinge não é senão a representação terrena
da constelação de Leão, tal como esta aparecia no céu no equinócio da primavera
de 10500 a .C,
precisamente no início da última era precessional de Leão? (West é ainda mais
radical, pois defende que se deve recuar um ciclo precessional inteiro [26 mil
anos] até cerca de 36000 a .C)
De acordo com
esta teoria designada por “Teoria da Correlação Orion”, as três pirâmides
principais e a esfinge não são senão a representação terrena, respetivamente,
das três estrelas que constituem a constelação de Orion e da constelação de
Leão, alinhadas com a posição exata que estas ocupavam no céu no início da era
precessional de Leão já referida, há pelo menos 12500 anos! (escusado será
dizer que isto tem profundas implicações na cronologia académica oficial,
segundo a qual a civilização egípcia não emergiu há mais de 4 mil anos, e a
Grande Pirâmide não foi construída senão em cerca de 2450 a .C… para servir
exclusivamente de túmulo ao faraó Khufu).
Mais uma vez, “Em
baixo, tal como em cima”; “Assim na terra como no céu”.
Mas há muitas
teorias, cada uma mais extraordinária que a outra. O que é certo é que o
Planalto de Guiza, e em particular a Grande Pirâmide, tem sido objeto de inúmeras
investigações pelo menos nos últimos 150 anos, por parte dos mais diversos
académicos (matemáticos, físicos, geólogos, arquitetos, engenheiros, etc.),
tendo sido descobertas as mais diversas correlações (por ex. com o raio do
planeta Terra, ou com aspetos astronómicos como os já referidos e muitos outros),
e também os alinhamentos mais rigorosos e extraordinários, e inclusive constantes
matemáticas (como o Pi) que não se pensava serem do conhecimentos dos antigos
egípcios; e apesar de todas estas descobertas e dados recolhidos, continuamos
sem uma resposta definitiva e realmente satisfatória relativamente ao propósito
e função destas estruturas fabulosas. No entanto, elas ali estão,
incontornáveis, e o mistério ao invés de se esclarecer, continua a adensar-se
mais e mais, e as perguntas são cada vez em maior número que as respostas.
E já estou
claramente a tergisversar por campos que não domino e que só conheço em
segunda-mão, sempre no papel de mero curioso-diletante.
Do recinto da
esfinge dirigi-me finalmente à pequena estrada de terra batida que sobe o
Planalto, até às pirâmides. Estava tão entusiasmado, tinha tanta energia nas
pernas (apesar do calor intenso e do sol que começava a atestar impiedosamente)
que estava mesmo decidido a fazer tudo a pé até lá em cima (falamos aí de uns
duzentos metros ou mais, sempre a subir), e quem sabe fazer sozinho a volta
panorâmica em torno das nove pirâmides (sim, são nove, contando com as seis pequenas
“mastabas” que rodeiam as três pirâmides principais, diz-se que eram os túmulos
das rainhas…). Estava completamente imune às recorrentes propostas dos
cameleiros e cavaleiros que apareciam a cada dez metros.
Devo só antes
dizer que, anteriormente à minha visita ao templo e ao recinto da esfinge,
quando entrei no Planalto, cheguei a pensar dirigir-me diretamente à Grande Pirâmide
(Khufu), a terceira a contar da esquerda quem sobe, para fazer a visita guiada
ao seu interior. Foi por isso que comecei a subir a estrada. O cameleiro que me
indicou a entrada para a esfinge disse-me também, quando lhe expliquei
apressada e impacientemente a minha intenção de visitar o interior da pirâmide,
que esta só abria ao meio-dia (raios!), e que o preço do bilhete era a “módica”
quantia de 200 libras
(lembram-se qual era o preço oficial tabelado e mil vezes confirmado no posto
de turismo? 100 libras !).
As duas informações, caídas assim de chofre, deixaram-me realmente irritado,
embora não fosse nada que eu realmente não estivesse à espera. Desde que
descobri que a Bibliotheca Alexandrina só abre às 11h - inclusive para os
estudantes - e fecha às 16h… Ai ai… (permitam-me o suspiro e a interjeição),
serviço público, onde paras….
Ora, o facto da
pirâmide de Khufu só abrir ao meio-dia, e não o preço, que eu estava e continuo
disposto a pagar (embora me enoje profundamente este odor pestilento de apego
ao lucro e de falta de consideração de sentido de serviço público que senti em muitos
museus e locais históricos que visitei), levou-me infelizmente a ter de
desistir, por esse dia, da minha pretensão de visitar o seu interior. Isto
porque o meu condutor (o do hotel), que supostamente estava contratado até às
15h, só estava afinal disponível até às 13h (às 15h, disse-me ele depois
daquela peripécia com o amigo dele, seria para estar já no hotel, sendo que
teríamos de contar com uma hora pelo menos de viagem de volta ao Cairo; curioso
como de repente ficou cheio de pressa…). Não percebi muito bem aquela conversa,
mas aceitei porque não queria correr o risco de voltar depois das 13h e não ter
boleia. E como provavelmente só entraria na Grande Pirâmide depois do meio-dia,
e a visita talvez demorasse uma hora ou mais, tive mesmo de desistir, para
minha frustração.
Foi aí que
surgiu o dilema que me levou a deixar cair a viagem a Luxor. Ou voltava ao
Cairo para completar a minha visita ao Planalto (i.e., entrar na pirâmide de
Khufu), ou gastava três dias em Luxor. Decidi por voltar ao Planalto (a esta
hora, devido à circunstância que não escolhi de ter de mudar de casa [que durou
três dias porque implicou, na verdade, duas mudanças], e a todo o cansaço e processo
de readaptação e reorientação mental associados, não é certo ainda se voltarei
a Guiza), o que associado àquela situação que referi de não estar certo de ter
bilhete para voltar de Luxor, me convenceu definitivamente a desistir da
viagem.
Dizia eu há
quatro parágrafos que depois da visita ao recinto da esfinge me lancei
novamente a subir o Planalto em direção às pirâmides, e que estava decidido a
fazer aquilo tudo sozinho. Um entre os muitos cameleiros por que passei, um
homem baixo e magro que me pareceu de idade avançada, de túnica cinza e
turbante branco do deserto a fazer lembrar um beduíno, atirou-me uma proposta
para fazer a volta panorâmica a camelo por 100 libras (ou algo
parecido); e ao perceber que eu não respondia e continuava a andar, foi
baixando para 50, depois para 30, depois para 10…
Apiedei-me com
aquilo. A facilidade com que o homem baixou o preço, sem necessidade sequer de
regateio, como quem implora… Ajudou o facto de eu ter começado a perceber que
subir o Planalto a penantes, com aquele sol, ia ser bem mais difícil do que eu
pensava inicialmente. Aproximei-me do homem; perguntei-lhe se fazia a volta
panorâmica por 30 libras .
Respondeu quase de imediato que sim, e que feliz ficou! Há ali muita
concorrência, e deve ser difícil para ele conseguir tirar trabalho aos
cameleiros e cavaleiros mais novos que por ali abundam em grandes quantidades.
Em todo o percurso a camelo, que durou entre hora a hora e meia (a mim
pareceram-me 20 minutos), o pobre homem não parava de dizer “If you´re happy,
I´m happy!”. E eu estava realmente “happy”, esfusiante como uma criança num
parque de diversões, feliz pelo privilégio de poder contemplar aquelas maravilhosas
montanhas humanas de tão perto, bem sentado e descansado nas costas de um
camelo. É realmente um privilégio, a experiência de uma vida!
Seguimos sempre
a passo lento, em silêncio, eu encavalitado no animal (encamelitado, para ser
mais rigoroso), e Mahmoud apeado à frente, a guiá-lo.
E naquele
silêncio extraordinário do deserto, que força ganham aqueles gigantes, como, como
eles falam, como eles enchem o silêncio com a sua presença monumental, com a
sua majestade, com o seu mistério! É como se o silêncio e a imensa uniformidade
árida do deserto amplificassem mil vezes, por contraste, de um modo quase gritante,
o caráter alienado, estranho, radicalmente improvável daquelas montanhas quase perfeitas;
como se positivamente não devessem estar ali, mas no entanto estando ali,
incontornáveis, impondo-se como anomalias misteriosas, testemunhas silenciosas
mas extremamente eloquentes da realização efetiva, algures num passado muito
distante, de qualquer coisa muito grande e elevada, em nome de um propósito igualmente
elevado, por mãos humanas (o mais provável), a uma escala e num nível de
perfeição que explodem com todas as cronologias e teorias históricas oficiais,
e que falam de propósitos e finalidades da vida humana que desafiam
radicalmente a mentalidade utilitária e materialista predominante no nosso
tempo.
Tudo aquilo
electriza, inspira, eleva. Se por um lado nos sentimos pequeninos - em especial
se estivermos muito perto, por ex., da Grande Pirâmide -, por outro sentimo-nos
elevados à sua grandeza, inspirados por ela, só por olhar. Sentimos que aquilo
também fala de nós, e fala para nós, quem sabe das nossas próprias
possibilidades humanas insuspeitas, da grandeza e profundidade da nossa
consciência, da nossa vontade, da nossa humanidade. Com a atitude e o olhar
certos, sentimos realmente que somos do tamanho do que vemos, e não do tamanho
da nossa altura, como dizia o Pessoa.
Chegados ao cimo
da estrada, começamos por fazer uma pequena paragem para tirar uma foto com a
Grande Pirâmide à direita, em plano de fundo (foi Mahmoud que decidiu e
insistiu; ele fazia questão que eu tirasse “good pictures” ). De seguida
dirigimo-nos para lá – eu estava impaciente por chegar perto da misteriosa
“Pirâmide de Khufu”, a maior e a mais antiga das “três grandes”, e a única das
sete maravilhas do mundo antigo que ainda resiste.
Pirâmide de Khufu ou "Grande Pirâmide" |
Quando chegamos
perto da fachada oeste da pirâmide, pedi para apear do camelo, saltei o
perímetro de cordas que a rodeia, e aproximei-me dela até tocar nos blocos da
base. A pedra é alaranjada, de textura porosa. Ali a pirâmide domina-nos
completamente, em altura e extensão; só a base mede a área equivalente a quatro
ou cinco campos de futebol, e a altura ultrapassa os 130 metros . Até à
construção do Empire State Building, já em pleno séc. XX, a Grande Pirâmide
conservou por mais de 4 mil anos o record de edifício mais alto do mundo! (isto
tendo em conta a conservadora cronologia oficial)
Vista a partir
da base, a pirâmide parece que nos convida a subir, lembrando uma larga e longa
escadaria cujo cume se confunde com o próprio céu. Uma vez mais temos um templo
que, pela sua natureza, parece capaz de encurtar a distância entre a terra e o
céu, de os aproximar, fazendo com que se toquem, com que se confundam para
criar um espaço de sacralidade “cósmica”. E de facto dá vontade de subir, mas
infelizmente – ou felizmente, por questões de segurança e conservação – é
proibido.
Outra perspetiva da Grande Pirâmide |
Junto à base... |
A olhar para o topo. A "escadaria" que se confunde com o céu. ´Bora subir? |
Depois de alguns minutos que pareceram muito curtos e manifestamente insuficientes, voltei à minha montada. Antes de retomarmos a volta tiramos uma foto a três – eu, Mahmoud e o camelo (de nome Maradona); depois montei e dirigimo-nos ao outro lado do Planalto, com o intuito de completarmos a volta às outras duas pirâmides maiores – primeiro a de Menkauré, por fim a de Khéfren.
Sempre a passo
de compasso, contornamos Menkauré pelo lado sul, e ao chegarmos ao lado oeste
fomos vendo aparecer a pirâmide de Khéfren, até aí escondida por detrás da
Menkauré. Fomos passando pelas pequenas pirâmides ou “mastabas” que brotam no
sopé das pirâmides maiores (seis no total), algumas bastante arruinadas, outras
em melhores condições, mas todas em pior estado que as pirâmides principais,
talvez por serem menos estáveis ou mais suscetíveis a vandalismos.
A "pequena" pirâmide de Menkauré |
Vista mais de perto já não parece tão pequena |
As mastabas |
A pirâmide central (Khéfren) a surgir por detrás da de Menkauré |
Khéfren, cada vez mais perto... |
Só para dizer que do lado sul do Planalto, perto da pirâmide de Menkauré, a vista do deserto - que se estende centenas de quilómetros para sul até Luxor, Assuão, e outras regiões - é ela própria assombrosa. Um horizonte de areia que nunca mais acaba, de este para oeste, e em profundidade, para sul, como se não existisse no mundo senão deserto; longas planícies amarelo-torrado, recortadas por mesetas muito lisas e outras pequenas elevações, ligeiramente mais escuras que a restante paisagem.
Vista do deserto |
Fomo-nos
aproximando da pirâmide de Khefrén pelo lado oeste, que embora mais pequena que
a de Khufu não deixa de ser uma colossal montanha artificial. É a única das
“três grandes” que ainda conserva, no topo, parte da cobertura original, feita
de blocos lisos de mármore ou alabastro (não tenho a certeza…).
(Várias perspetivas da não menos colossal pirâmide de Khéfren)
Por fim, viramos
pelo lado norte desta pirâmide central, e descemos pela estrada até ao sopé do
Planalto, de onde partimos cerca de hora e meia antes.
Despedi-me de
Mahmoud, homem afável, com um brilho muito jovial no olhar, resistente,
habituado às agruras do deserto, capaz de andar horas no pico do calor e do sol
sem meter água à boca, quase sem se cansar, apesar da idade (aparentemente)
avançada. Ao invés das 30
libras combinadas, paguei-lhe 50. Acho que ficamos
amigos.
Antes de dar por
terminada a minha visita, senti que tinha de voltar ao recinto da esfinge.
Ainda tinha algum tempo, queria sentar-me um pouco, queria degustar, queria
apreciar, queria contemplar, queria pensar. Entrei de novo pelo “Templo da
Esfinge”, passei pelo pátio central, subi a rampa. Sentei-me no pátio do
recinto, num pequeno muro, com a esfinge à minha frente, e ali fiquei, talvez
vinte minutos, meia hora. Deviam ser por volta das 11h30, e o número de
turistas no recinto havia aumentado consideravelmente. Também estava lá um polícia,
de farda branca, que ia cumprimentando os turistas, dando-lhes as boas vindas,
e também mandando-os descer do muro quando eles se empoleiravam para tirar
fotografias. Mas o inglês que falava era muito básico, e nem me respondeu
quando eu apontei para a esfinge, do alto do meu entusiasmo quase infantil, e
lhe disse basicamente que tinham ali tinham era uma maravilha… Passado um
pouco, virou-se para mim e perguntou, “Tips?”. Sim, ele queria “tips”, uma
ajudinha, talvez um complemento ao seu reduzido salário, ou apenas uma gorjeta.
Ele via-me
parado, só a olhar. Devia achar aquilo estranho, devia achar que eu não estava
bom da cabeça. Perguntava “Good? Good?”, e eu respondia que sim, “Good!”. Tive
medo que me prendesse só por olhar.
Olhar, olhar; as
pessoas deviam parar, olhar, e sobretudo calar. Todo o ruído, naquele contexto,
soa a violência, a profanação. Isso e aquela caça doentia e permanente ao
dinheiro do turista, que ali, naquele contexto em particular, perante aquelas
maravilhas da antiguidade, fica mesmo muito mal. Toda aquela grandeza casa mal
com a mesquinhez da ganância, a sede do lucro, aquele incomodar incessante, aquela
quase coação permanente para comprar, para largar os cordões à bolsa, como se o
turista tivesse alguma obrigação, e aquilo fosse alguma coutada particular ao
invés de ser património da humanidade; tenho tanto direito como qualquer pessoa
a andar por ali sem ser incomodado, como homem e não como um cifrão com pernas.
Por fim,
satisfeito mas um pouco desconsolado pela brevidade da visita, vim-me embora.
Que
extraordinária manhã!
2ª parte – Regresso a Alexandria
De volta ao
Cairo, Moses deixou-me perto da estação de Ramsis, tal como combinado. Um pouco
desorientado, visto que não sabia onde era a estação pois nunca tinha
efetivamente lá ido, perguntei a um rapaz onde esta ficava. O rapaz, da minha
idade ou talvez mais novo, fez questão de me levar até lá, não desmentindo a
tradicional simpatia e hospitalidade egípcia à qual me habituei.
Perto da estação
de Ramsis, que é a estação ferroviária principal, situada num imponente
edifício amarelo, existe efetivamente, tal como me tinham dito, uma pequena
postagem ou garagem de minibuses que vão e vêm das mais diversas cidades.
Tinha-me sido dito diversas vezes, no posto de turismo de Alexandria e por
outras pessoas (inclusive pelo rapaz que conheci no minibus na manhã do dia
anterior), que podia efetivamente aí apanhar o minibus de regresso a
Alexandria, que partia, segundo me disseram, quase de hora a hora.
Mas não era bem
assim, pelo menos nesse dia. O rapaz que foi comigo trocou algumas palavras com
as pessoas que estavam na postagem de Ramsis, e pela expressão facial percebi
logo que não era coisa boa: não havia minibuses para Alexandria nesse dia.
Porquê? Pelos vistos porque havia polícia por lá, ou coisa que o valha, o que
impedia que os costumeiros minibuses que fazem a viagem pendular
Alexandria-Cairo não pudessem lá estacionar, sendo que muito provavelmente nem
sequer tinham licença para ir até ao Cairo (tal como o minibus que me levou lá
na manhã anterior).
Só havia uma
alternativa: o comboio. Muito bem, o rapaz, sempre muito solícito, fez questão
de ir comigo até à estação, ali a meia dúzia de metros, para me orientar. Numa
das bilheteiras, onde as pessoas se atropelavam e ultrapassam mutuamente de
acordo com a tradicional “fila” egípcia, o rapaz lá conseguiu perguntar à
funcionária se tinha bilhetes de comboio para a Alexandria. A resposta foi
negativa. Também já não havia comboio! Normalmente, pelo que me disseram, é
difícil comprar bilhetes de comboio no próprio dia. Mas voltar de comboio nunca
foi a minha intenção desde início.
O rapaz
desculpou-se como se a culpa fosse dele, coitado, mas eu disse-lhe que estava
tudo bem, e só pedi que me ajudasse a encontrar o posto de turismo que existe
dentro da estação. Lá, talvez pudessem ajudar-me. E tinha razão: chegados ao
balcão do posto de turismo, numa sala do edifício, expliquei a situação à
funcionária, dizendo que tinha impreterivelmente de voltar a Alexandria nesse
dia. Ela, muito simpática, com um sorriso, pediu-me para aguardar uns
instantes. Pareceu tão fácil que desconfiei que estava safo.
Ela foi à porta
da sala e chamou um dos polícias que faz segurança no interior da estação.
Trocou meia-dúzia de palavras com o homem e chamou-me: disse-me para o
acompanhar que ele iria ajudar-me. E de facto foi verdade: dali, fomos até a
uma outra parte da estação, onde havia outra bilheteira. O polícia chegou-se à
frente, falou com a funcionária da bilheteira, e uns minutos depois eu tinha
bilhete. Era uma pequena tira de cartão, retangular, dactilografada de um lado
com o preço (25 libras )
e o destino, e escrevinhada à mão do outro lado, em arábico naturalmente, com o
número do comboio, a carruagem, o lugar e a hora da partida (14h10). Dali
voltamos ao posto de turismo, onde o polícia me deixou e a funcionária me
traduziu o bilhete.
Era por volta
das 13h30. Como eu não queria perder o comboio de forma nenhuma, e ainda tinha
de saber qual era a plataforma, dirigi-me rapidamente ao pátio central da
estação; e depois de uma voltinha rápida pela praça de alimentação, no piso
superior, desci e vi no placard principal que a plataforma do meu comboio era a
número 5.
Na zona exterior
das plataformas, perguntei a meia-dúzia de pessoas qual das plataformas era a
cinco (só mais tarde percebi que estava identificada, e em inglês, mas
inicialmente não tinha visto). Uma vez na plataforma 5, devo ter confirmado
umas mil vezes com quem lá estava se aquele comboio lá estacionado era o 919,
que era o meu.
Um rapaz que
percebeu que eu era estrangeiro meteu conversa comigo (como de costume), e
acabou por me dizer que aquele comboio era tipo regional, dos que param em
todas as estações e apeadeiros, e que portanto devia demorar umas 3h30, 4 horas
a chegar à Alexandria (daí o bilhete ser apenas 25 libras , quando
normalmente é 35 para cima). Por mim tudo bem, naquela altura o que me interessava
era chegar.
Alguém me disse
também que a minha carruagem era a primeira de todas, na frente do comboio.
Tudo bem: pouco
antes das 14h10 entrei numa das primeiras carruagens, convencido de que podia
facilmente galgá-las todas, por dentro, até à carruagem 9, que era a minha. Aí
começaram as dificuldades.
Creio que
galguei duas carruagens sem grande dificuldade, mas já não sei exatamente por
que razão (talvez em parte porque as carruagens não estão numeradas, e mesmo
que estivessem eu não entendia), julguei que tinha chegado à minha carruagem, e
contente procurei o meu lugar e sentei-me descansadinho.
As pessoas
começavam a acumular-se nos corredores, em grandes flocos, e sobretudo nos vãos
entre as carruagens.
Subitamente
chega um rapaz que se dirige a mim em arábico, como quem reclama o seu lugar. Um
bocado atrapalhado, lá entendi que aquele 52 onde me sentei ainda não era
efetivamente o 52 a
que eu tinha direito; dito de outra forma, ainda não estava na minha carruagem,
embora uns momentos antes estivesse convencido que sim, tão ou mais que o
Colombo de ter chegado à Índia.
Levantei-me e
lancei-me novamente à tarefa de galgar carruagens, numa altura em que começava
a torna-se impossível andar pelos corredores, muito menos atravessar os vãos
das carruagens, cada vez mais cheios de gente, uns empurrando-se para entrar ou
apenas para não serem esmagados, outros sentando-se no chão como se não fosse
nada, impedindo a passagem.
Foi então que a
minha saga realmente começou. A cada vão que tentava atravessar ia-se tornado
cada vez mais difícil passar. Eu, no entanto, estava absolutamente decidido a
não ficar a meio caminho, a não ter de passar 4 horas de viagem em pé ou, pior,
espremido como uma sardinha enlatada. Por isso, apesar de toda a pressão e de
todas as dificuldades, ia arranjando maneira de passar espremendo-me entre
aquela massa de gente cada vez mais compacta.
Sair e ir por
fora do comboio estava fora de questão, à uma porque era impossível sair, à
segunda porque nada me garantia que depois conseguia entrar.
A certa altura
tive medo: no vão de uma das carruagens as pessoas começaram a pressionar mais
e mais, alguns a berrar, e por momentos parecia que a coisa se ia descontrolar
e ia haver pânico e mortos e feridos, e eu ali no meio. Mas não: lá consegui
passar, depois de muito esforço, meu e, verdade seja dita, das pessoas que tentavam
ajudar-me a abrir caminho na medida do possível, apesar delas próprias estarem
em dificuldades.
O clímax desta
saga ocorreu no vão da última carruagem, precisamente antes de chegar ao meu
lugar. Talvez por ser o último tinha de ser o mais difícil. A multidão tinha
atingido um limite incomportável, e parecia absolutamente impossível sequer
imaginar passar. Eu é que não estava para “morrer na praia” sabendo que do
outro lado, a 10 metros se tanto, estava
o meu lugar, o lugar pelo qual eu paguei, a garantia de que não ia passar 4
horas em pé e espremido como uma sardinha.
Mas parecia
impossível. Por mais que eu quisesse passar, ou que as pessoas quisessem
ajudar-me, parecia não haver nada a fazer. Havia simplesmente demasiada gente
para um espaço demasiado exíguo, e toda a gente lutava e se acotovelava, e
havia umas caixas no chão a atravancar mais ainda. Que caos!, parecia mesmo que
eu ia ter de ficar ali…
De repente, um
rapaz à minha direita sussurrou-me “Climb that box!”. Quando ouvi aquilo pensei
que ele estava a brincar comigo ou a ser irónico, quase como quando gritamos
“Passa por cima!” aos carros que se põem a apitar atrás de nós nas filas de
trânsito. Para todos era flagrante que eu queria passar, pelo modo como gritava
“I have a ticket! I have a ticket!”, enquanto exibia bem alto o meu bilhete, e
que de uma maneira ou de outra havia arranjar maneira de passar, nem que fosse
por cima!
And so i did!
Foi mesmo por cima que passei! O rapaz voltou a dizer, “Climb that box!”, e
dessa vez percebi que era a sério, e subi mesmo para a caixa que estava aos
meus pés. E de repente estava ali, em cima da caixa, completamente curvado,
pois o teto era baixo; agora, de certeza é que eu não ia ficar 4 horas naquela
posição! Tinha mesmo de passar, e não havia outra solução senão por cima,
deixando-me cair no topo daquela massa de gente que parecia que me chamava, que
me incentivava, e confiar me transportassem em mãos até ao outro lado…
E então
deixei-me cair, como fazem os cantores de rock nos concertos; e já não sei quem,
nem como, nem quantas mãos me transportaram e me depositaram, por fim, do outro
lado, no meio de uns quantos puxões e sacudidelas, enquanto eu só pensava em
agarrar-me com mãos, unhas e dentes à mochila, à bolsa e ao bilhete, como quem
se agarra à vida… Quando me vi no chão gritei um sonoro “Thank you!”, enquanto
alguns se riam e outros me congratulavam e só lhes faltava bater palmas… E nem
preocupei por ter as calças em baixo, ou por estar ofegante como se tivesse
corrido a maratona, ou por ter as pessoas a olhar para mim como se fosse um
extra-terrestre; estava finalmente na minha carruagem, e só queria sentar-me
finalmente no meu lugar e descansar.
Que situação!
É por estas e
por outras que fiquei irremediavelmente convencido da bondade deste povo.
4 horas depois,
por volta das 18h30, estava finalmente em Sidi Gaber, Alexandria. Como ouvi um
dia alguém dizer, “Longos dias são 100 anos”, e é verdade.
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