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sábado, 20 de junho de 2015

Viagem ao Cairo - Dia 2 (Planalto de Guiza - Pirâmides e esfinge) - Crónica




Quinta-feira, 11 de junho de 2015


1ª parte – Visita ao Planalto de Guiza (pirâmides e esfinge)


Eis que chega a manhã tão esperada. Às 7h30 estava a subir ao piso do restaurante para tomar o pequeno-almoço. Uma sala não muito ampla, com meia dúzia de mesas cobertas com toalhas vermelhas; só estava mais um cliente, egípcio pareceu-me. O empregado trouxe o café e o leite, e um prato com dois pães longos e um pacotinho de queijo (suponho) para barrar, e um de compota. Barrei o queijo no pão, mas não gostei; pedi mais um pão e comi a seco, molhado no café; o pão era doce, por isso soube bem na mesma.

Despachado desci à receção e esperei pelo motorista. À hora prevista (8h15), o rececionista idoso, que depois percebi fazia também as funções de valet e concierge, chamou-me e acompanhou-me, no seu passo lento, até ao elevador. Descemos juntos. Na rua, “entregou-me” ao motorista, que pelo carro percebi imediatamente que era apenas um taxista que fazia uns trabalhos para o hotel, quando solicitado e sempre que podia.

Partimos em plena hora de ponta no Cairo. Pelo menos no centro da cidade, o tráfego parece mais organizado que em Alexandria (como aliás quase tudo; não se vê tanto lixo nas ruas, e há passadeiras e semáforos em quantidade considerável). Mas estou certo que afastando-nos um pouco do centro, em particular nos subúrbios mais periféricos, as coisas serão bem diferentes.

Moses (era assim que se chamava o motorista) começou a entabular conversa comigo, a perguntar de onde era, o que fazia no Egipto, o costume. Ofereceu-me um cigarro; agradeci mas respondi que não fumava de manhã, mas que mais para a tarde, depois da volta em Guiza, era capaz de aceitar. A certa altura entramos na estrada da marginal, e fomos seguindo, com o vasto Nilo à nossa direita. Moses, sempre muito simpático e solícito, disse que íamos passar num sítio fantástico, de onde eu poderia tirar uma “great picture” do Nilo; porque ele, Moses, estava ali para me proporcionar grandes oportunidades fotográficas, e um dia inesquecível. Não se fartou de o repetir, aliás, durante toda a viagem até Guiza. Eu, que tinha o meu objetivo bem traçado, e não estava para desvios de última hora nem para chegar atrasado à abertura do Planalto, respondi que só queria que me levasse a Guiza, e nada mais. Mas, de facto, neste ponto, Moses estava certo: a dado momento viramos à direita e entramos numa larga ponte-autoestrada que atravessa o rio. A vista, do cimo da ponte, era realmente extraordinária. Lá lhe pedi que encostasse o carro, e apeei. Do miradouro via-se o Nilo, muito largo, correndo lenta e pesadamente como se lhe pesassem os milénios, ou como se de tão antigo se tivesse tornado indiferente ou superior ao próprio tempo. Ao longo da margem, à direita, até perder de vista, viam-se prédios altos, como gigantes alinhados que fossem beber ao rio. Ao longo da margem, à esquerda, quase não se viam prédios altos, mas pequenos prédios residenciais sem acabamentos, ainda na “carne viva” do tijolo. De uma margem para a outra, que diferença curiosa... Tirei não uma mas três fotos, olhei novamente, e voltei para o carro.

Uma das fotos do Nilo captadas do cimo da ponte
Andamos mais uns quarenta e cinco minutos, e dos dois lados da estrada iam surgindo cada vez mais e mais destes bairros de tijolo, de subúrbio; nada que se comparasse ao centro do Cairo (ver foto 2).

Foto 2

De repente, após uma curva ligeira, surgem lá muito longe, no horizonte recortado dos prédios, as figuras alvas, ainda meio inseguras, como que pintadas a marca de água, de duas montanhas muito exatas, em forma de pirâmide – eram as duas pirâmides maiores, a de Khefrén e a de Khufu, lá muito longe! Finalmente!, nem queria acreditar… Via-as com os meus próprios olhos, pela primeira vez! 

Comecei a ficar realmente emocionado e excitado (sim, excitado é a palavra certa); sentia-me como uma criança que está a chegar ao parque de diversões...

Finalmente entramos no subúrbio de Guiza, com as suas casas baixas e inúmeras estalagens de estrada, pequenas lojas, e estradas poeirentas. Parece uma daquelas cidades pequenas do faroeste americano que vemos nos filmes. O deserto está ali muito perto; consegue sentir-se-lhe o peso, e ver-se-lhe os contornos, em particular a partir do Planalto. Não admira; a partir dali, para sul, pouco mais há senão deserto aberto durante centenas de quilómetros.

Viramos numa rua em que fomos imediatamente “assaltados” por uns quantos rapazes, vindos de todos os lados; dos passeios, da estrada, eu sei lá. Não sei se por terem percebido que o carro levava um estrangeiro, não sei. Pela conversa do Moses parece que sim. Não acredito que quisessem roubar, mas antes “assediar” (a minha experiência, posta à prova em várias circunstâncias, diz-me que este povo é incapaz de roubar, pelo menos às claras e de forma agressiva; no Islão o crime de roubo é demasiado grave, e quem quer que seja visto a roubar é severamente punido logo ali, pela justiça popular; a isto, devemos somar um respeito quase reverencial pelo “estrangeiro”, a quem o Islão comanda o maior respeito e hospitalidade; e isso sente-se quase sempre, em particular na afabilidade e genuína bondade – quase ingénua – que se encontra na maioria das pessoas).

Com efeito, o “assédio” dos pequenos comerciantes e vendedores de “tours”, corridas de cavalo, camelo, e outros, estava apenas a começar; haveria de durar praticamente toda a visita, fora e dentro do Planalto de Guiza.

Depois entramos numa zona que, segundo Moses, era mais policiada, e que distava poucas centenas de metros da entrada do Planalto. Por fim, fomos estacionar numa zona muito ampla, só com uma entrada, rodeada por pequenas estalagens, mercados, lojas de souvenirs, etc. Apeamos, e Moses, ao invés de me dizer imediatamente onde ficava a entrada do Planalto, onde eu ansiava por me dirigir rapidamente, fez questão que o acompanhasse a uma dessas casas ou lojas onde já estava um amigo à espera, que mal me viu, pronta e polidamente me saudou e convidou a entrar sem mais delongas. Eu já sabia o que aí vinha, e comecei a ficar irritado e impaciente.

Então o homem começou com a manteiga do costume (de onde vem, para onde vai, Portugal, ahh, o Ronaldo!, bla bla bla…), e eu já com um pé fora da porta. Começou a falar-me dos tours, e que me ia mostrar o mapa do Planalto para vermos a melhor opção de “tour” para mim, e a mostrar-me fotos de outros turistas a darem beijos à esfinge e não sei quê… Já farto daquilo, até porque tinha passado grande parte da manhã a repetir ao Moses que QUERIA EXCLUSIVAMENTE QUE ME LEVASSE À ENTRADA DO PLANALTO, respirei fundo e respondi mais ou menos isto, da forma mais assertiva sem ser agressiva que consegui: “Listen, I don´t want any camel, or horse, or tour, or whatever; I JUST WANT TO GO TO THE PLATEAU AND SEE THE PYRAMIDS, AS SOON AS POSSIBLE!”. E nisto virei costas e saí; mas o homem ainda insistiu e veio atrás de mim, “Sir!, Sir!, SIR!”, e eu, “Bye, bye… No, No, NO, Thanks but NO… NO, NO, NO, Bye, Bye…..”, e em poucos segundos já estava longe.

Finalmente, vencido, Moses lá veio comigo até à saída daquele perímetro, e indicou-me a entrada no Planalto. Só tinha de virar ali à esquerda, seguir sempre e encontrava a bilheteira.

Nisto, eu via já, ao longe, para meu frenesi interior, em toda a sua extensão, como num postal, as três pirâmides principais, e a esfinge, comparativamente bem mais pequena, a olhar para mim, como quem diz “Demoras muito?!”. Apressei o passo, e cada vez me aproximava mais daquela visão, e cada vez mais me parecia que estava dentro de um postal muito grande, e a cada passo estava mais incrédulo com o que via. Por fim cheguei ao muro baixo que rodeia aquela parte do Planalto, e já de lágrima no olho e todo arrepiado, pousei os cotovelos no muro e a cara entre as mãos, sem desviar os olhos daquilo. E então chorei mesmo, as lágrimas a correr pela cara abaixo. Tinha-me muitas vezes imaginado a chorar quando lá chegasse, como o tinha feito relativamente a outros locais que visitei, mas nunca, nunca me tinha acontecido realmente chegar ao local e chorar, como me aconteceu desta vez. Só me cabiam na boca palavras de agradecimento por tudo aquilo, a Deus em primeiro lugar.

Foto panorâmica do Planalto. Foi basicamente esta a minha vista à chegada.


Eram 9 da manhã, ou perto disso.

À chegada.

De seguida fui para a bilheteira, em passo corrida, e já surdo a todos os “assédios” que iam aparecendo no caminho, um atrás do outro. Comprei o bilhete (60 libras – preço tabelado; 85 libras – preço real; lembram-se?); dirigi-me à zona de acesso, onde não faltavam funcionários “oficiosos”, rapazes e até crianças; quando dei por mim estava a ser encaminhado por um destes “oficiosos”, um rapaz com os seus vinte anos, até ao detetor de metais, onde depositei a mochila e a bolsa pequena; em segundos a bolsa e a mochila estavam do outro lado, e um miúdo dos seus dez anos pegou neles e ficou meio estarrecido com eles na mão, à espera não sei do quê, a olhar não sei para quem, menos para mim; e eu, que ainda estava do lado de cá, a passar eu próprio pelo detetor e a ser inspecionado pelo segurança, comecei a ficar preocupado e não conseguia tirar os olhos da mochila e da bolsa, e não via a hora de as tirar das mãos do miúdo, não fossem elas de repente ser “absorvidas” por aquela massa de gente “oficiosa”, que pelos vistos trabalha ali, embora não se entenda bem porquê, quem permite, e a que título.

E voltamos uma vez mais à questão da falta de uma política “amiga do turista”. Parece tudo meio sem lei, sem autoridade, sem regras, sem profissionalidade; que segurança é que isto transmite a quem vem de fora?

Finalmente estava do lado de dentro. Os “assédios” recomeçaram quase de imediato (corridas a camelo, a cavalo, souvenirs, etc.), mas eu já estava imune e segui. Olhei em volta, a pensar o que fazer primeiro. A esfinge estava ali do lado direito, a umas dezenas de metros, mas parecia inacessível, rodeada por ruínas de templos, e portões, e gradeamentos. Segui em frente pela estrada que sobe em direção às pirâmides (o Planalto é sempre a subir, da esfinge em baixo às pirâmides lá em cima). Inicialmente, pretendia saber como chegar à esfinge. Depois de subir bastante, aproximou-se - mais um - condutor de camelos para me propor uma corrida panorâmica em torno do Planalto; respondi que não e perguntei-lhe onde era a entrada para o recinto da esfinge. Ao invés de me responder logo começou a insistir na corrida, mas ao ver a minha impaciência lá me disse que tinha de voltar para trás e virar à esquerda, lá em baixo.

Segui a indicação e voltei para trás. A entrada para o recinto da esfinge faz-se através do que chamam de “Templo da Esfinge”, que é só por si belo e intrigante. Todo ele é feito de grandes blocos maciços de granito, e no coração do templo existe um amplo pátio a céu aberto, todo recortado por arcadas tipo stonehenge (dois pilares e um capitel) em linha reta, criando corredores perfeitamente alinhados e paralelos entre si. Alguns dos pilares e capitéis, todos grandes paralelípipedos perfeitamente talhados, já desapareceram, mas percebe-se qual era o padrão original a partir do que ainda resiste; e tudo aquilo continua a emanar ordem, harmonia, beleza, apesar da degradação e dos milénios passados.


Bloco superior do vão de entrada para o Templo da Esfinge. Só para dar uma noção da dimensão e da perfeição do talhe.



Pátio interior central com arcadas "tipo stonehenge"

Detive-me um pouco neste pátio, a deambular e a apreciar aquelas belas estruturas. Estava sozinho, no silêncio da manhã, o sol já alto. Perguntei-me muitas vezes acerca do propósito daquela construção – para que serve? quem construiu este templo ao lado da Esfinge, e porquê? Que espécie de devoção se praticava aqui, e porquê? Porque quando se vê tanta ordem, perfeição e complexidade, percebe-se que tem de haver um propósito muito forte para levar alguém a empenhar tantos recursos e saber nessa construção. E sente-se também que tudo aquilo faz parte de um sentido maior, cumpre uma função específica no contexto maior de uma “ciência”, de um elaborado corpo de crenças cujo sentido total nos escapa completamente. É esse forte de sentido de propósito que permeia todo o Planalto de Guiza; não há ali nenhuma aleatoriedade, nenhum “barbarismo”; tudo aquilo foi feito para durar, para veicular uma mensagem muito forte, para cumprir uma função incontornável, não apenas para uma época específica, mas para todas as épocas. E isto com base numa tecnologia muito avançada, e num corpo de conhecimentos bem desenvolvido. Como já muitos disseram, o que ali existe é muito mais do que o simples produto de faraós com a mania da grandeza…

É extraordinário com o “céu casa com a terra” naquele pequeno pátio. As arcadas megalíticas elevam-se muito direitas e ordenadas, como se pretendessem cumprimentar os raios de sol que vêm do alto, comungar com eles, fundir-se com eles.

Ali o sol projeta os seus raios generosamente, graciosamente, como um deus que abençoa e que diz “Assim tudo está bem” (foto 6 e 7).

Foto 6

Foto 7

Sempre foi, aliás, esta a função de qualquer templo digno desse nome: associar a “ordem de baixo” à “ordem de cima”; abrir um espaço no mundo profano no qual a ordem sagrada pode ter lugar, influir no mundo. Para esse efeito o próprio templo tem que respeitar a ordem sagrada, ser construído de acordo com as regras e leis da “ordem cósmica”, de modo a que a comunhão entre o céu e a terra possa de facto ter lugar. “Em baixo, tal como em cima”, reza o primeiro princípio da sabedoria alquímica; “Assim na Terra como no Céu”, rezamos nós. 

Mais tarde ouvi um guia dizer que tinha sido naquele pequeno templo que Khufu (ou Khefrén, já não me recordo bem) tinha sido mumificado, antes de ser sepultado na pirâmide com o seu nome. Era pelo menos isso que estava a contar a outros turistas. Tanto quanto sei, não há quaisquer provas históricas de que isto tenha sido assim, mas para a ortodoxia académica, em especial no Egipto, a história oficial continua e continuará a ser a de que as três pirâmides maiores do Planalto foram construídas por Khufu, Khefrén e Menkauré para servirem de túmulo a estes três faraós, e naturalmente é a partir desse quadro teórico que se continua e continuará por muitos anos a interpretar a função de outras estruturas associadas do Planalto, mesmo que não existam provas suficientes que o sustentem.

A partir deste pátio, curiosamente, sobe-se por uma rampa que vai dar a um outro pátio sobranceiro à esfinge, perfeitamente alinhado com a pirâmide central (Khefrén), a tal ponto que quem sobe a rampa consegue ver a pirâmide ao fundo, como que emoldurada pelo vão da arco de entrada desse pátio, situado no fim da rampa. Este alinhamento talvez esteja na base da ideia de que foi neste pátio central que Khefrén foi mumificado, pois ele sugere que existe um relação estreita entre este pequeno templo e a pirâmide central, e que pode ter sido por este caminho que liga as duas estruturas que o corpo deste faraó foi transportado até à sua morada final, após a mumificação.


Foto da rampa a descer


Foto da rampa a subir.
A pirâmide de Khéfren emoldurada pelo vão de entrada para o pátio da esfinge.

Subi pela rampa, atravessei o vão, entrei no pátio alto, e de repente tinha a esfinge do meu lado direito, no recinto alguns níveis abaixo. Estava sozinho, mas não passou muito tempo até que estivesse acompanhado por um pequeno grupo de turistas, não percebi bem de que nacionalidade, acompanhados de um guia. Só tive pena de não poder descer ao recinto para poder estar efetivamente “face a face” com ela, qual Édipo dos tempos modernos. Também eu estava ali à procura da resposta ao Enigma.

Mas ela não fala muito. Continua, como sempre, em silêncio, de olhos fixos no horizonte-este de onde o sol nasce todas as manhãs, como que indiferente à poeira das coisas humanas, e ao próprio tempo. Continua refractária a qualquer pergunta, a qualquer tentativa humana de desvendar o seu segredo. Como não sou especial, não consegui melhor que nenhum outro antes de mim, e saí de lá sem a resposta que queria. Fui lá duas vezes, e nem assim.

Esfinge vista a partir do pátio superior, com a Grande Pirâmide ao fundo

É evidente: somos nós, na nossa ambição humana, muitas vezes desmedida, que fazemos perguntas demasiado ambiciosas ou demasiado mesquinhas, à procura de respostas que ninguém a não ser nós próprios pode dar, com a nossa vida, as nossas escolhas, o nosso esforço de aperfeiçoamento. Queremos que outrém que não nós nos ofereça a chave da nossa própria vocação, da nossa liberdade, a chave que desvenda o enigma que cada um é para si próprio.
Mas ela parece dizer, do alto da sua indiferença, “Quem sou eu para responder à tua ambição? Procura dentro de ti próprio; esforça-te!”. Ou como diz o adágio antigo, “Conhece-te a ti mesmo”. 

Mas ela fala de um outro segredo maior e mais importante, e é esse que interessa: qual a sua real função? Qual o propósito que serve, no contexto das restantes estruturas do Planalto? Quem representa? Será aquela face a de Khufu, como defende o “mainstream” académico? Será apenas a representação do rei em toda a glória da sua força e poder (daí a cabeça humana em corpo de leão), contemplando o seu próprio renascimento no horizonte-este, como um deus-sol que venceu a noite do Duat (i.e., a morte, a aniquilação eterna)? Ou será que, tal como defendem investigadores mais heterodoxos (como Bauval, Hancock, West e outros) a esfinge não é senão a representação terrena da constelação de Leão, tal como esta aparecia no céu no equinócio da primavera de 10500 a.C, precisamente no início da última era precessional de Leão? (West é ainda mais radical, pois defende que se deve recuar um ciclo precessional inteiro [26 mil anos] até cerca de 36000 a.C)

De acordo com esta teoria designada por “Teoria da Correlação Orion”, as três pirâmides principais e a esfinge não são senão a representação terrena, respetivamente, das três estrelas que constituem a constelação de Orion e da constelação de Leão, alinhadas com a posição exata que estas ocupavam no céu no início da era precessional de Leão já referida, há pelo menos 12500 anos! (escusado será dizer que isto tem profundas implicações na cronologia académica oficial, segundo a qual a civilização egípcia não emergiu há mais de 4 mil anos, e a Grande Pirâmide não foi construída senão em cerca de 2450 a.C… para servir exclusivamente de túmulo ao faraó Khufu).

Mais uma vez, “Em baixo, tal como em cima”; “Assim na terra como no céu”.

Mas há muitas teorias, cada uma mais extraordinária que a outra. O que é certo é que o Planalto de Guiza, e em particular a Grande Pirâmide, tem sido objeto de inúmeras investigações pelo menos nos últimos 150 anos, por parte dos mais diversos académicos (matemáticos, físicos, geólogos, arquitetos, engenheiros, etc.), tendo sido descobertas as mais diversas correlações (por ex. com o raio do planeta Terra, ou com aspetos astronómicos como os já referidos e muitos outros), e também os alinhamentos mais rigorosos e extraordinários, e inclusive constantes matemáticas (como o Pi) que não se pensava serem do conhecimentos dos antigos egípcios; e apesar de todas estas descobertas e dados recolhidos, continuamos sem uma resposta definitiva e realmente satisfatória relativamente ao propósito e função destas estruturas fabulosas. No entanto, elas ali estão, incontornáveis, e o mistério ao invés de se esclarecer, continua a adensar-se mais e mais, e as perguntas são cada vez em maior número que as respostas.

E já estou claramente a tergisversar por campos que não domino e que só conheço em segunda-mão, sempre no papel de mero curioso-diletante.

Do recinto da esfinge dirigi-me finalmente à pequena estrada de terra batida que sobe o Planalto, até às pirâmides. Estava tão entusiasmado, tinha tanta energia nas pernas (apesar do calor intenso e do sol que começava a atestar impiedosamente) que estava mesmo decidido a fazer tudo a pé até lá em cima (falamos aí de uns duzentos metros ou mais, sempre a subir), e quem sabe fazer sozinho a volta panorâmica em torno das nove pirâmides (sim, são nove, contando com as seis pequenas “mastabas” que rodeiam as três pirâmides principais, diz-se que eram os túmulos das rainhas…). Estava completamente imune às recorrentes propostas dos cameleiros e cavaleiros que apareciam a cada dez metros.

Devo só antes dizer que, anteriormente à minha visita ao templo e ao recinto da esfinge, quando entrei no Planalto, cheguei a pensar dirigir-me diretamente à Grande Pirâmide (Khufu), a terceira a contar da esquerda quem sobe, para fazer a visita guiada ao seu interior. Foi por isso que comecei a subir a estrada. O cameleiro que me indicou a entrada para a esfinge disse-me também, quando lhe expliquei apressada e impacientemente a minha intenção de visitar o interior da pirâmide, que esta só abria ao meio-dia (raios!), e que o preço do bilhete era a “módica” quantia de 200 libras (lembram-se qual era o preço oficial tabelado e mil vezes confirmado no posto de turismo? 100 libras!). As duas informações, caídas assim de chofre, deixaram-me realmente irritado, embora não fosse nada que eu realmente não estivesse à espera. Desde que descobri que a Bibliotheca Alexandrina só abre às 11h - inclusive para os estudantes - e fecha às 16h… Ai ai… (permitam-me o suspiro e a interjeição), serviço público, onde paras….

Ora, o facto da pirâmide de Khufu só abrir ao meio-dia, e não o preço, que eu estava e continuo disposto a pagar (embora me enoje profundamente este odor pestilento de apego ao lucro e de falta de consideração de sentido de serviço público que senti em muitos museus e locais históricos que visitei), levou-me infelizmente a ter de desistir, por esse dia, da minha pretensão de visitar o seu interior. Isto porque o meu condutor (o do hotel), que supostamente estava contratado até às 15h, só estava afinal disponível até às 13h (às 15h, disse-me ele depois daquela peripécia com o amigo dele, seria para estar já no hotel, sendo que teríamos de contar com uma hora pelo menos de viagem de volta ao Cairo; curioso como de repente ficou cheio de pressa…). Não percebi muito bem aquela conversa, mas aceitei porque não queria correr o risco de voltar depois das 13h e não ter boleia. E como provavelmente só entraria na Grande Pirâmide depois do meio-dia, e a visita talvez demorasse uma hora ou mais, tive mesmo de desistir, para minha frustração.

Foi aí que surgiu o dilema que me levou a deixar cair a viagem a Luxor. Ou voltava ao Cairo para completar a minha visita ao Planalto (i.e., entrar na pirâmide de Khufu), ou gastava três dias em Luxor. Decidi por voltar ao Planalto (a esta hora, devido à circunstância que não escolhi de ter de mudar de casa [que durou três dias porque implicou, na verdade, duas mudanças], e a todo o cansaço e processo de readaptação e reorientação mental associados, não é certo ainda se voltarei a Guiza), o que associado àquela situação que referi de não estar certo de ter bilhete para voltar de Luxor, me convenceu definitivamente a desistir da viagem.

Dizia eu há quatro parágrafos que depois da visita ao recinto da esfinge me lancei novamente a subir o Planalto em direção às pirâmides, e que estava decidido a fazer aquilo tudo sozinho. Um entre os muitos cameleiros por que passei, um homem baixo e magro que me pareceu de idade avançada, de túnica cinza e turbante branco do deserto a fazer lembrar um beduíno, atirou-me uma proposta para fazer a volta panorâmica a camelo por 100 libras (ou algo parecido); e ao perceber que eu não respondia e continuava a andar, foi baixando para 50, depois para 30, depois para 10…

Apiedei-me com aquilo. A facilidade com que o homem baixou o preço, sem necessidade sequer de regateio, como quem implora… Ajudou o facto de eu ter começado a perceber que subir o Planalto a penantes, com aquele sol, ia ser bem mais difícil do que eu pensava inicialmente. Aproximei-me do homem; perguntei-lhe se fazia a volta panorâmica por 30 libras. Respondeu quase de imediato que sim, e que feliz ficou! Há ali muita concorrência, e deve ser difícil para ele conseguir tirar trabalho aos cameleiros e cavaleiros mais novos que por ali abundam em grandes quantidades. Em todo o percurso a camelo, que durou entre hora a hora e meia (a mim pareceram-me 20 minutos), o pobre homem não parava de dizer “If you´re happy, I´m happy!”. E eu estava realmente “happy”, esfusiante como uma criança num parque de diversões, feliz pelo privilégio de poder contemplar aquelas maravilhosas montanhas humanas de tão perto, bem sentado e descansado nas costas de um camelo. É realmente um privilégio, a experiência de uma vida!

Seguimos sempre a passo lento, em silêncio, eu encavalitado no animal (encamelitado, para ser mais rigoroso), e Mahmoud apeado à frente, a guiá-lo.

E naquele silêncio extraordinário do deserto, que força ganham aqueles gigantes, como, como eles falam, como eles enchem o silêncio com a sua presença monumental, com a sua majestade, com o seu mistério! É como se o silêncio e a imensa uniformidade árida do deserto amplificassem mil vezes, por contraste, de um modo quase gritante, o caráter alienado, estranho, radicalmente improvável daquelas montanhas quase perfeitas; como se positivamente não devessem estar ali, mas no entanto estando ali, incontornáveis, impondo-se como anomalias misteriosas, testemunhas silenciosas mas extremamente eloquentes da realização efetiva, algures num passado muito distante, de qualquer coisa muito grande e elevada, em nome de um propósito igualmente elevado, por mãos humanas (o mais provável), a uma escala e num nível de perfeição que explodem com todas as cronologias e teorias históricas oficiais, e que falam de propósitos e finalidades da vida humana que desafiam radicalmente a mentalidade utilitária e materialista predominante no nosso tempo.

Tudo aquilo electriza, inspira, eleva. Se por um lado nos sentimos pequeninos - em especial se estivermos muito perto, por ex., da Grande Pirâmide -, por outro sentimo-nos elevados à sua grandeza, inspirados por ela, só por olhar. Sentimos que aquilo também fala de nós, e fala para nós, quem sabe das nossas próprias possibilidades humanas insuspeitas, da grandeza e profundidade da nossa consciência, da nossa vontade, da nossa humanidade. Com a atitude e o olhar certos, sentimos realmente que somos do tamanho do que vemos, e não do tamanho da nossa altura, como dizia o Pessoa.

Chegados ao cimo da estrada, começamos por fazer uma pequena paragem para tirar uma foto com a Grande Pirâmide à direita, em plano de fundo (foi Mahmoud que decidiu e insistiu; ele fazia questão que eu tirasse “good pictures” ). De seguida dirigimo-nos para lá – eu estava impaciente por chegar perto da misteriosa “Pirâmide de Khufu”, a maior e a mais antiga das “três grandes”, e a única das sete maravilhas do mundo antigo que ainda resiste.

Pirâmide de Khufu ou "Grande Pirâmide"
Quando chegamos perto da fachada oeste da pirâmide, pedi para apear do camelo, saltei o perímetro de cordas que a rodeia, e aproximei-me dela até tocar nos blocos da base. A pedra é alaranjada, de textura porosa. Ali a pirâmide domina-nos completamente, em altura e extensão; só a base mede a área equivalente a quatro ou cinco campos de futebol, e a altura ultrapassa os 130 metros. Até à construção do Empire State Building, já em pleno séc. XX, a Grande Pirâmide conservou por mais de 4 mil anos o record de edifício mais alto do mundo! (isto tendo em conta a conservadora cronologia oficial)


Armado em Lawrence das Arábias

Vista a partir da base, a pirâmide parece que nos convida a subir, lembrando uma larga e longa escadaria cujo cume se confunde com o próprio céu. Uma vez mais temos um templo que, pela sua natureza, parece capaz de encurtar a distância entre a terra e o céu, de os aproximar, fazendo com que se toquem, com que se confundam para criar um espaço de sacralidade “cósmica”. E de facto dá vontade de subir, mas infelizmente – ou felizmente, por questões de segurança e conservação – é proibido.


Outra perspetiva da Grande Pirâmide

Mais uma, a partir da fachada oeste. Vejam que colosso!

Vertente oeste... Nunca mais acaba...

Junto à base...

A olhar para o topo. A "escadaria" que se confunde com o céu. ´Bora subir?

Depois de alguns minutos que pareceram muito curtos e manifestamente insuficientes, voltei à minha montada. Antes de retomarmos a volta tiramos uma foto a três – eu, Mahmoud e o camelo (de nome Maradona); depois montei e dirigimo-nos ao outro lado do Planalto, com o intuito de completarmos a volta às outras duas pirâmides maiores – primeiro a de Menkauré, por fim a de Khéfren.

Eu e o meu "guia", Mahmoud, e o camelo Maradona

Sempre a passo de compasso, contornamos Menkauré pelo lado sul, e ao chegarmos ao lado oeste fomos vendo aparecer a pirâmide de Khéfren, até aí escondida por detrás da Menkauré. Fomos passando pelas pequenas pirâmides ou “mastabas” que brotam no sopé das pirâmides maiores (seis no total), algumas bastante arruinadas, outras em melhores condições, mas todas em pior estado que as pirâmides principais, talvez por serem menos estáveis ou mais suscetíveis a vandalismos.

A "pequena" pirâmide de Menkauré

Vista mais de perto já não parece tão pequena

As mastabas

A pirâmide central (Khéfren) a surgir por detrás da de Menkauré

Khéfren, cada vez mais perto...

Só para dizer que do lado sul do Planalto, perto da pirâmide de Menkauré, a vista do deserto - que se estende centenas de quilómetros para sul até Luxor, Assuão, e outras regiões - é ela própria assombrosa. Um horizonte de areia que nunca mais acaba, de este para oeste, e em profundidade, para sul, como se não existisse no mundo senão deserto; longas planícies amarelo-torrado, recortadas por mesetas muito lisas e outras pequenas elevações, ligeiramente mais escuras que a restante paisagem.

Vista do deserto

Fomo-nos aproximando da pirâmide de Khefrén pelo lado oeste, que embora mais pequena que a de Khufu não deixa de ser uma colossal montanha artificial. É a única das “três grandes” que ainda conserva, no topo, parte da cobertura original, feita de blocos lisos de mármore ou alabastro (não tenho a certeza…).

(Várias perspetivas da não menos colossal pirâmide de Khéfren)








Por fim, viramos pelo lado norte desta pirâmide central, e descemos pela estrada até ao sopé do Planalto, de onde partimos cerca de hora e meia antes.

Despedi-me de Mahmoud, homem afável, com um brilho muito jovial no olhar, resistente, habituado às agruras do deserto, capaz de andar horas no pico do calor e do sol sem meter água à boca, quase sem se cansar, apesar da idade (aparentemente) avançada. Ao invés das 30 libras combinadas, paguei-lhe 50. Acho que ficamos amigos.

Antes de dar por terminada a minha visita, senti que tinha de voltar ao recinto da esfinge. Ainda tinha algum tempo, queria sentar-me um pouco, queria degustar, queria apreciar, queria contemplar, queria pensar. Entrei de novo pelo “Templo da Esfinge”, passei pelo pátio central, subi a rampa. Sentei-me no pátio do recinto, num pequeno muro, com a esfinge à minha frente, e ali fiquei, talvez vinte minutos, meia hora. Deviam ser por volta das 11h30, e o número de turistas no recinto havia aumentado consideravelmente. Também estava lá um polícia, de farda branca, que ia cumprimentando os turistas, dando-lhes as boas vindas, e também mandando-os descer do muro quando eles se empoleiravam para tirar fotografias. Mas o inglês que falava era muito básico, e nem me respondeu quando eu apontei para a esfinge, do alto do meu entusiasmo quase infantil, e lhe disse basicamente que tinham ali tinham era uma maravilha… Passado um pouco, virou-se para mim e perguntou, “Tips?”. Sim, ele queria “tips”, uma ajudinha, talvez um complemento ao seu reduzido salário, ou apenas uma gorjeta.

Ele via-me parado, só a olhar. Devia achar aquilo estranho, devia achar que eu não estava bom da cabeça. Perguntava “Good? Good?”, e eu respondia que sim, “Good!”. Tive medo que me prendesse só por olhar.

Olhar, olhar; as pessoas deviam parar, olhar, e sobretudo calar. Todo o ruído, naquele contexto, soa a violência, a profanação. Isso e aquela caça doentia e permanente ao dinheiro do turista, que ali, naquele contexto em particular, perante aquelas maravilhas da antiguidade, fica mesmo muito mal. Toda aquela grandeza casa mal com a mesquinhez da ganância, a sede do lucro, aquele incomodar incessante, aquela quase coação permanente para comprar, para largar os cordões à bolsa, como se o turista tivesse alguma obrigação, e aquilo fosse alguma coutada particular ao invés de ser património da humanidade; tenho tanto direito como qualquer pessoa a andar por ali sem ser incomodado, como homem e não como um cifrão com pernas.  

Por fim, satisfeito mas um pouco desconsolado pela brevidade da visita, vim-me embora.

Que extraordinária manhã!


2ª parte – Regresso a Alexandria


De volta ao Cairo, Moses deixou-me perto da estação de Ramsis, tal como combinado. Um pouco desorientado, visto que não sabia onde era a estação pois nunca tinha efetivamente lá ido, perguntei a um rapaz onde esta ficava. O rapaz, da minha idade ou talvez mais novo, fez questão de me levar até lá, não desmentindo a tradicional simpatia e hospitalidade egípcia à qual me habituei.

Perto da estação de Ramsis, que é a estação ferroviária principal, situada num imponente edifício amarelo, existe efetivamente, tal como me tinham dito, uma pequena postagem ou garagem de minibuses que vão e vêm das mais diversas cidades. Tinha-me sido dito diversas vezes, no posto de turismo de Alexandria e por outras pessoas (inclusive pelo rapaz que conheci no minibus na manhã do dia anterior), que podia efetivamente aí apanhar o minibus de regresso a Alexandria, que partia, segundo me disseram, quase de hora a hora.

Mas não era bem assim, pelo menos nesse dia. O rapaz que foi comigo trocou algumas palavras com as pessoas que estavam na postagem de Ramsis, e pela expressão facial percebi logo que não era coisa boa: não havia minibuses para Alexandria nesse dia. Porquê? Pelos vistos porque havia polícia por lá, ou coisa que o valha, o que impedia que os costumeiros minibuses que fazem a viagem pendular Alexandria-Cairo não pudessem lá estacionar, sendo que muito provavelmente nem sequer tinham licença para ir até ao Cairo (tal como o minibus que me levou lá na manhã anterior).

Só havia uma alternativa: o comboio. Muito bem, o rapaz, sempre muito solícito, fez questão de ir comigo até à estação, ali a meia dúzia de metros, para me orientar. Numa das bilheteiras, onde as pessoas se atropelavam e ultrapassam mutuamente de acordo com a tradicional “fila” egípcia, o rapaz lá conseguiu perguntar à funcionária se tinha bilhetes de comboio para a Alexandria. A resposta foi negativa. Também já não havia comboio! Normalmente, pelo que me disseram, é difícil comprar bilhetes de comboio no próprio dia. Mas voltar de comboio nunca foi a minha intenção desde início.

O rapaz desculpou-se como se a culpa fosse dele, coitado, mas eu disse-lhe que estava tudo bem, e só pedi que me ajudasse a encontrar o posto de turismo que existe dentro da estação. Lá, talvez pudessem ajudar-me. E tinha razão: chegados ao balcão do posto de turismo, numa sala do edifício, expliquei a situação à funcionária, dizendo que tinha impreterivelmente de voltar a Alexandria nesse dia. Ela, muito simpática, com um sorriso, pediu-me para aguardar uns instantes. Pareceu tão fácil que desconfiei que estava safo.

Ela foi à porta da sala e chamou um dos polícias que faz segurança no interior da estação. Trocou meia-dúzia de palavras com o homem e chamou-me: disse-me para o acompanhar que ele iria ajudar-me. E de facto foi verdade: dali, fomos até a uma outra parte da estação, onde havia outra bilheteira. O polícia chegou-se à frente, falou com a funcionária da bilheteira, e uns minutos depois eu tinha bilhete. Era uma pequena tira de cartão, retangular, dactilografada de um lado com o preço (25 libras) e o destino, e escrevinhada à mão do outro lado, em arábico naturalmente, com o número do comboio, a carruagem, o lugar e a hora da partida (14h10). Dali voltamos ao posto de turismo, onde o polícia me deixou e a funcionária me traduziu o bilhete.

Era por volta das 13h30. Como eu não queria perder o comboio de forma nenhuma, e ainda tinha de saber qual era a plataforma, dirigi-me rapidamente ao pátio central da estação; e depois de uma voltinha rápida pela praça de alimentação, no piso superior, desci e vi no placard principal que a plataforma do meu comboio era a número 5.

Na zona exterior das plataformas, perguntei a meia-dúzia de pessoas qual das plataformas era a cinco (só mais tarde percebi que estava identificada, e em inglês, mas inicialmente não tinha visto). Uma vez na plataforma 5, devo ter confirmado umas mil vezes com quem lá estava se aquele comboio lá estacionado era o 919, que era o meu.

Um rapaz que percebeu que eu era estrangeiro meteu conversa comigo (como de costume), e acabou por me dizer que aquele comboio era tipo regional, dos que param em todas as estações e apeadeiros, e que portanto devia demorar umas 3h30, 4 horas a chegar à Alexandria (daí o bilhete ser apenas 25 libras, quando normalmente é 35 para cima). Por mim tudo bem, naquela altura o que me interessava era chegar.

Alguém me disse também que a minha carruagem era a primeira de todas, na frente do comboio.

Tudo bem: pouco antes das 14h10 entrei numa das primeiras carruagens, convencido de que podia facilmente galgá-las todas, por dentro, até à carruagem 9, que era a minha. Aí começaram as dificuldades.

Creio que galguei duas carruagens sem grande dificuldade, mas já não sei exatamente por que razão (talvez em parte porque as carruagens não estão numeradas, e mesmo que estivessem eu não entendia), julguei que tinha chegado à minha carruagem, e contente procurei o meu lugar e sentei-me descansadinho.

As pessoas começavam a acumular-se nos corredores, em grandes flocos, e sobretudo nos vãos entre as carruagens.

Subitamente chega um rapaz que se dirige a mim em arábico, como quem reclama o seu lugar. Um bocado atrapalhado, lá entendi que aquele 52 onde me sentei ainda não era efetivamente o 52 a que eu tinha direito; dito de outra forma, ainda não estava na minha carruagem, embora uns momentos antes estivesse convencido que sim, tão ou mais que o Colombo de ter chegado à Índia.

Levantei-me e lancei-me novamente à tarefa de galgar carruagens, numa altura em que começava a torna-se impossível andar pelos corredores, muito menos atravessar os vãos das carruagens, cada vez mais cheios de gente, uns empurrando-se para entrar ou apenas para não serem esmagados, outros sentando-se no chão como se não fosse nada, impedindo a passagem.

Foi então que a minha saga realmente começou. A cada vão que tentava atravessar ia-se tornado cada vez mais difícil passar. Eu, no entanto, estava absolutamente decidido a não ficar a meio caminho, a não ter de passar 4 horas de viagem em pé ou, pior, espremido como uma sardinha enlatada. Por isso, apesar de toda a pressão e de todas as dificuldades, ia arranjando maneira de passar espremendo-me entre aquela massa de gente cada vez mais compacta.

Sair e ir por fora do comboio estava fora de questão, à uma porque era impossível sair, à segunda porque nada me garantia que depois conseguia entrar.

A certa altura tive medo: no vão de uma das carruagens as pessoas começaram a pressionar mais e mais, alguns a berrar, e por momentos parecia que a coisa se ia descontrolar e ia haver pânico e mortos e feridos, e eu ali no meio. Mas não: lá consegui passar, depois de muito esforço, meu e, verdade seja dita, das pessoas que tentavam ajudar-me a abrir caminho na medida do possível, apesar delas próprias estarem em dificuldades.

O clímax desta saga ocorreu no vão da última carruagem, precisamente antes de chegar ao meu lugar. Talvez por ser o último tinha de ser o mais difícil. A multidão tinha atingido um limite incomportável, e parecia absolutamente impossível sequer imaginar passar. Eu é que não estava para “morrer na praia” sabendo que do outro lado, a 10  metros se tanto, estava o meu lugar, o lugar pelo qual eu paguei, a garantia de que não ia passar 4 horas em pé e espremido como uma sardinha.

Mas parecia impossível. Por mais que eu quisesse passar, ou que as pessoas quisessem ajudar-me, parecia não haver nada a fazer. Havia simplesmente demasiada gente para um espaço demasiado exíguo, e toda a gente lutava e se acotovelava, e havia umas caixas no chão a atravancar mais ainda. Que caos!, parecia mesmo que eu ia ter de ficar ali…

De repente, um rapaz à minha direita sussurrou-me “Climb that box!”. Quando ouvi aquilo pensei que ele estava a brincar comigo ou a ser irónico, quase como quando gritamos “Passa por cima!” aos carros que se põem a apitar atrás de nós nas filas de trânsito. Para todos era flagrante que eu queria passar, pelo modo como gritava “I have a ticket! I have a ticket!”, enquanto exibia bem alto o meu bilhete, e que de uma maneira ou de outra havia arranjar maneira de passar, nem que fosse por cima!

And so i did! Foi mesmo por cima que passei! O rapaz voltou a dizer, “Climb that box!”, e dessa vez percebi que era a sério, e subi mesmo para a caixa que estava aos meus pés. E de repente estava ali, em cima da caixa, completamente curvado, pois o teto era baixo; agora, de certeza é que eu não ia ficar 4 horas naquela posição! Tinha mesmo de passar, e não havia outra solução senão por cima, deixando-me cair no topo daquela massa de gente que parecia que me chamava, que me incentivava, e confiar me transportassem em mãos até ao outro lado…

E então deixei-me cair, como fazem os cantores de rock nos concertos; e já não sei quem, nem como, nem quantas mãos me transportaram e me depositaram, por fim, do outro lado, no meio de uns quantos puxões e sacudidelas, enquanto eu só pensava em agarrar-me com mãos, unhas e dentes à mochila, à bolsa e ao bilhete, como quem se agarra à vida… Quando me vi no chão gritei um sonoro “Thank you!”, enquanto alguns se riam e outros me congratulavam e só lhes faltava bater palmas… E nem preocupei por ter as calças em baixo, ou por estar ofegante como se tivesse corrido a maratona, ou por ter as pessoas a olhar para mim como se fosse um extra-terrestre; estava finalmente na minha carruagem, e só queria sentar-me finalmente no meu lugar e descansar.

Que situação!

É por estas e por outras que fiquei irremediavelmente convencido da bondade deste povo.

4 horas depois, por volta das 18h30, estava finalmente em Sidi Gaber, Alexandria. Como ouvi um dia alguém dizer, “Longos dias são 100 anos”, e é verdade.






Viagem ao Cairo - Dia 1 (Museu Egípcio e outras histórias) - Crónica


Quarta-feira, 10 de junho de 2015


1ª Parte – Viagem para o Cairo; Visita ao Museu Egípcio


O dia começou muito cedo. Às 4h30 estava a pé, e às 5 estava a sair de casa. Já era dia claro. A cidade estava ainda meio a dormir; ainda não se ouviam os pregões dos condutores de minibus (minibus é uma pequena carrinha de 9, 10 lugares, que serve de transporte público) -  “Falaqui! Falaqui!”, pregam eles – postados do lado de cá da linha do comboio, à espera de encherem os carros. Ainda era muito cedo, mas pelo menos do outro lado da rua, como eu esperava, estavam postados os minibuses que vão para os lados de Sidi Gaber, a estação de comboios onde tencionava apanhar o minibus que me levaria ao Cairo.

Nem foi preciso perder muito tempo a fazer o sinal de paragem gestual específico da estação de Sidi Gaber (Sidi Gaber, tal como aprendi no dia anterior, assinala-se com um movimento pendular da mão em concha, na horizontal, que lembra vagamente o movimento de um comboio na linha; como nenhum minibus tem indicação do destino para onde vai, é preciso fazer o sinal específico e aguardar que algum pare em resposta). Dois minutos depois de ter atravessado a rua parou um minibus em resposta o meu sinal; entrei e partimos para a estação.

Chegado a Sidi Gaber, tinha acabado de apear e dado alguns passos na direção da rua esconsa e escondida, em frente à estação, mas do outro lado da rua principal, onde se apanha o minibus para o Cairo, quando um condutor pregou “Ramsis! Ramsis!”, que era precisamente o meu destino no Cairo, a estação de Ramsis. Logo ali à face da rua, estava o minibus que eu precisava (a competição entre os condutores é feroz, pelo que é normal aquela hora encontrá-los em posições estratégicas, quanto mais expostas melhor).

Entrei, confirmei rapidamente o preço e o destino com o condutor e os passageiros (nunca é demais perguntar uma e outra vez a mesma coisa a várias pessoas, pedir várias opiniões, para evitar mal-entendidos que aqui ocorrem com muitíssima facilidade, dadas as diferenças de língua, e a falta de uma organização a que chamo “amiga do turista”, que implica, por exemplo, uma extrema dificuldade em encontrar quem fale um inglês minimamente fluente, sobretudo entre os condutores, motoristas, e até nos serviços públicos). Às 5h30, carro cheio, partimos para o Cairo.

Foi uma viagem limpa, sem incidentes, tirando uma operação stop cujo sentido não compreendi exatamente, em plena autoestrada, por volta das 6h50. Suponho que a polícia estaria a inspecionar as licenças dos minibuses e outros veículos que pretendiam entrar no Cairo, visto que estes precisam de ter uma licença especial para o fazer. Não sei. Também paramos uma outra vez para meter gasolina. A certa altura ocorreu outro pequeno incidente, em plena auto-estrada que, tivessem as coisas sido diferentes em, digamos, meio metro, podia ter sido antes um grande acidente: depois de uma ultrapassagem estranha, o nosso condutor, meio atrapalhado, lá conseguiu desviar-se, suponho que no último segundo, de um minibus que vinha em direção contrária… Só percebi quando vi o condutor subitamente atrapalhado, de repente obrigado a decidir se ia para e esquerda ou para a direita, e ouvi um “zuuumm” tão súbito e curto quanto estridente, que fez a carrinha abanar, provocado pelo outro carro que vinha em sentido contrário, a rasar-nos à nossa esquerda (percebe-se o porquê de todos os anos, no Egipto, morrerem mais de seis mil pessoas só em acidentes de viação). E um passageiro, dois assentos à direita de mim, com um ângulo de visão muito melhor que o meu, viu com certeza a cena toda desde o início – suponho, por isso, que deve ter visto em flashback não apenas toda a sua vida atual mas também umas quantas vidas passadas, tal foi o salto que deu no assento e a intensidade do gesto de reprovação que fez com a cabeça e com os dentes e a língua…

Bem: depois de sensivelmente 2h30 de viagem, tal como previsto, entramos no Cairo. Pelo caminho fui falando com um rapaz que estava ao meu lado, esclarecendo algumas dúvidas, etc., e foi quando ele me disse que se a minha intenção era ir diretamente ao Museu Egípcio para estar lá na hora de abertura, o melhor era sair antes de chegarmos à estação de Ramsis (na prática, o minibus nunca chegaria a Ramsis, porque, segundo eu percebi depois de ele andar às voltas durante uns vinte minutos, ele não tinha licença para ir mesmo até Cairo…). Foi o que fiz: a certa altura o minibus parou por cima de um viaduto de onde era perfeitamente visível, lá em baixo, umas centenas de metros mais à frente, o edifício rosa do Museu Egípcio, e também o rio Nilo, ali logo em baixo, à direita. O rapaz disse-me que era ali, e eu apeei. Imediatamente vi uma escadaria que ligava o viaduto à rua de baixo. Desci rapidamente, e vi logo, do outro lado da estrada da marginal, à minha direita, o balcão gradeado sobranceiro ao Nilo; entusiasmado, galguei a estrada em duas passadas para vê-lo. E ali estava ele, largo, frondoso, a perder de vista; cheio de história, berço e alimento de uma civilização única, incomparável, que durou (dizem as teorias mais conservadoras) mais de três mil anos, e é ainda hoje fonte de vida para centenas de milhões de pessoas em mais de dez países. Eram cerca das 8 da manhã.

Rio Nilo - foto tirada à chegada ao Cairo

Dali fui rapidamente para o Museu Egípcio. Contornei o edifício para chegar à frontaria, de onde se vê, umas centenas de metros mais à frente, a famosa Praça Tahir – centro administrativo do Egipto, famosa sobretudo pela revolução de junho de 2011. Depois de passar uns quantos gradeamentos postados na praça defronte ao museu, com polícias aqui e ali, sorridentes e bem sentados, e de finalmente perceber como atravessar aquele labirinto, lá cheguei à zona demarcada por marcos negros espetados no chão, onde é suposto os visitantes fazerem fila, paralela à grade adjacente ao alto portão negro gradeado da entrada. Fui o primeiro, mas não demorou muito até estar acompanhado por outros turistas de muitos países, sobretudo vindo em grupos de escursão.

Museu Egípcio
Também não demorou muito até que um conjunto – suponho, já quase “residente” – de “guias” se acercassem de nós oferecendo os seus serviços como guias do museu, falando várias línguas, exibindo o seu conhecimento acerca da história egípcia e suas antiguidades, e alguns já avançando com outras propostas de “tour”, e pacotes especiais e isto e aquilo… Aliás, o que não falta no Cairo são ofertas de escursões e “tours” à medida, a maioria consideravelmente barata, sobretudo para bolsos ocidentais. Vai-se a andar na rua e não faltam grandes e pequenas agências, e gente e abordar-nos nos passeios para oferecer este ou aquele tour, seja um dia inteiro a visitar as pirâmides de Guiza, Sakara e Dashour, seja um cruzeiro no Nilo, etc. etc. A rede é imensa, e pelo que me parece toda a gente faz parte dela, e trabalha para ela, direta ou indiretamente: hóteis, condutores de táxi, guias oficiais e oficiosos, etc.

E o que é certo é que muitos turistas, ali à entrada do museu, aceitaram ser “guiados”, em grupo ou individualmente, por estes “guias” oficiosos; e parece-me, pelo que pude ver, que foram bem servidos, porque alguns destes guias pareciam mesmo entender do assunto (claro que sempre nos moldes da ortodoxia académica ou “mainstream” da história egípcia), e por isso certamente que alguns turistas ficaram muito mais esclarecidos do que eu, que preferi “guiar-me” sozinho pelo meio de todas aquelas inúmeras maravilhas, e na maior parte do tempo parecia um pouco como o “burro a olhar para um palácio” – isto é, abismado, mas a perceber muito pouco ou nada. E isto assenta, a meu ver, num dos problemas fundamentais deste museu; mas já lá irei.
À espera da abertura do museu.

Às 9 abriu as portas. Depois de passar pelo detetor de metais (eu e a mochila), dirigi-me à bilheteira. Primeiro problema, que eu para ser sincero já previa há muito: o preço do bilhete é de 75 libras, 15 libras acima do preço tabelado oficialmente nos principais sites de turismo do Egipto, e, o que é bem mais grave, do preço que o posto de turismo de Alexandria me confirmou mais do que uma vez (60 libras), depois de eu lhes ter perguntado se a tabela de preços disponível no site touregypt.com estava atualizada. Inclusive, disseram-me no posto de turismo que podia encontrar a mesma tabela e o mesmo preço (60 libras) no site oficial da Autoridade Egípcia para o Turismo (egypt.travel.com).

Ou seja, as autoridades do turismo simplesmente não atualizam a tabela de preços das entradas nos monumentos e museus, e continuam sistematicamente a informar mal os turistas, como eu pude confirmar em todas as minhas visitas no Cairo. Vejamos: entrada no Museu Egípcio – preço oficial tabelado, 60 libras; preço real, 75 libras; entrada Planalto de Guiza (Pirâmides e Esfinge) – preço oficial tabelado, 60 libras; preço real, 85 libras; entrada pirâmide de Khufu (que não visitei por falta de tempo, mas está para breve) – preço oficial tabelado, 100 libras; preço real (pasme-se), 200 libras! (o dobro). Este é só um dos problemas que tornam o Egipto pouco “amigo do turista” (pelo menos do turista pobre que não vai em tours à medida e escursões, e que tem de organizar por si as suas deslocações, fazer por si as suas marcações, ir por sua conta e risco); vale-lhes a imensa e incalculável riqueza histórica, cultural e patrimonial deste país, que continua e continuará a atrair centenas de milhares de turistas todos os anos, até ao fim do mundo, apesar de tudo.

Comprado o bilhete, e depois de uma pequena divagação pelo pátio exterior do museu, onde se encontram várias estátuas, obeliscos e estelas em exposição, lá entrei. Pelas regras do museu enunciadas num quadro no hall de entrada, percebi imediatamente, para minha grande desilusão, que não podia tirar fotografias (segundo problema).
Estátua do deus Hórus,
umas das muitas peças expostas no pátio exterior à entrada do Museu
Devia ter previsto, pois aconteceu-me o mesmo nos museus de Alexandria, tanto no de Antiguidades, dentro da Bibliotheca Alexandrina, como no Museu Nacional. Percebe-se que esta é política comum, que vem do topo. O propósito… bem, podemos especular: por um lado, para evitar que se façam réplicas das peças a partir das fotos; por outro lado (e esta parece-me a razão mais plausível), porque as autoridades que gerem o turismo e antiguidades devem achar que, se as pessoas tirarem muitas fotos, vão mostrá-las, exibi-las, e publicá-las em sites, blogs e redes sociais, o que vai fazer com que o número de visitantes do museu diminua; pois se as pessoas podem ver as peças por foto e de graça, para quê ir ao museu? Não me admira que esta seja a principal razão, dado que me parece que é sobretudo assim que as autoridades encaram o seu próprio património histórico: menos como uma fonte de cultura e ilustração, ao serviço de todos, e mais como uma inesgotável fonte de rendimento, um “petróleo” cultural que é preciso fazer render a qualquer custo. Perguntem ao Louvre se perde visitantes por permitir tirar fotos a tudo e em qualquer parte…
Vista mais global do pátio exterior

O museu, há que dizer, é extraordinário, acima de tudo pelo que contém, não tanto pelo modo como está organizado. Desde logo, o acervo é, ele próprio, à escala monumental: cerca de dois milhões de peças, e mais sempre a chegar, organizadas pelas três “idades” principais da civilização egípcia: Império Antigo, Império Novo e Império Tardio (da dinastia ptolomaica à invasão romana), contando também com o pequeno interregno de 17 anos do reinado de Akhenaten, a que se convencionou chamar de “Período Amarniano”. Isto só no primeiro piso!

Está lá (quase tudo): a estátua de Khefren (filho de Khufu) com mais de 4 mil anos, negra e extraordinariamente polida, à escala humana, com Hórus representado por um falcão assente por detrás da cabeça do rei, de asas abertas, como que a “abençoá-lo”; a estatueta de sete centímetros que representa Khufu, pai de Khefren e – suposto, nunca é demais repetir – construtor da grande pirâmide, para servir como seu túmulo - embora nunca, jamais, em qualquer das três pirâmides de Guiza, se tenha encontrado qualquer túmulo, múmia ou inscrição funerária alusiva a qualquer um dos três supostamente lá enterrados (Mikerinos, Khefren e Kheops); entre tantas outras riquezas de valor histórico e cultural incalculável, quase sinto necessidade de colocar o prefixo “inúmeros” em cada um dos tipos de peça: inúmeros-grandes túmulos, inúmeros-sarcófagos, inúmeras-estátuas e estatuetas, inúmeras-estelas, inúmeras-inscrições hieroglíficas, inúmeros-pequenos vasos, potes e taças em alabastro, em mármore, em granito rosa e negro, etc. E todas elas (em particular as respeitantes ao Império Antigo, o que é curioso) de uma perfeição, de um rigor estrutural, de um sentido de propósito, passíveis de deixar em estupor qualquer engenheiro, arquiteto, escultor ou artesão dos nossos dias, e que tornam bastante duvidosa – senão mesmo absurda – a ideia de que os antigos egípcios não possuíam qualquer tipo de maquinaria (electrónica ou de outro tipo), e faziam tudo a martelo e cinzel. Os pequenos vasos, taças, potes, garrafas e outras pequenas peças “continentes” esculpidas em pequenos blocos de alabastro, mármore, granito, etc., são disso exemplo paradigmático: expliquem-me como se esculpe, nestes materiais de dureza superior, circunferências perfeitas, gargalos sem falhas, e interiores bojudos perfeitamente simétricos, às vezes de raio superior ao gargalo, apenas com martelo, cinzéis e outros instrumentos rudimentares... Expliquem-me como se esculpe, apenas com estes instrumentos rudes, as faces exatas e simétricas de uma estátua, de tal forma que quatro mil anos depois ainda se lhe vê o sorriso, o polimento está intacto, e o brilho não se perdeu.

E a quantidade e complexidade imensa dos hieróglifos e símbolos, associados em inscrições intermináveis que cobrem paredes inteiras de túmulos e rolos de papiro com dezenas de metros de extensão; a perfeição, o rigor, a simetria com que eles estão inscritos na pedra ou no papiro, repetindo e reformulando fórmulas simbólicas de acordo com regras e princípios precisos, contendo significados que até hoje apenas traduzimos imperfeita e parcialmente; não consegui – e creio que ninguém consegue – deixar de sentir intimamente que está ali a expressão de uma sólida, vasta, antiga e bem estabelecida “ciência”, pouco compatível com a ideia de uma civilização rudimentar que está a dar os primeiros passos nas artes da civilização... Simplesmente é tudo demasiado competente. Se não fosse por tudo isto, as pirâmides e a esfinge de Guiza seriam, a meu ver, prova mais do que suficiente de que isto não é assim.  

Várias peças são impressionantes neste piso; a pequena exposição dedicada ao Período Amarniano impressionou-me particularmente, em grande parte porque a história do reinado de Akhenaten, o “rei herético”, é por si só impressionante e tem o seu quê de romântica (Akhenaten foi o pai do mais famoso dos faraós, Tutankaten, cujo nome haveria mais tarde de ser alterado para Tutankamon, após a morte de Akhenaten e o falhanço da “revolução” religiosa amarniana). Todas as representações de Akhenaten são intrigantes, sobretudo pela sua compleição física muito pouco natural: face e membros esguios e alongados, caixa craniana de volume e comprimento superior ao normal (característica que alguns dos seus filhos, também representados em estatuária, haviam de herdar), anca e coxas largas de mulher, ausência de órgão sexual masculino (em algumas estátuas é representado nu da cinta para baixo). Vemos isto principalmente nos quatro impressionantes colossos expostos deste faraó.

Esta época viu emergir uma forma inédita e única de naturalismo artístico, que não voltou a repetir-se em toda a história da civilização egípcia; uma arte com “rosto humano”, liberta do formalismo e rigidez da anterior religião de Amon, e que permitia, por exemplo, que a família real (Akhenaten, Nefertiti e filhos) fosse representada, em estatuária e em relevos, em plena convivência familiar ou em troca de afetos (é especialmente interessante uma estátua de Nefertiti a beijar o filho pequeno na boca).

Há uma alegria “edénica”, luminosa e “solar” que transparece nos relevos e figurações deste período, que exprime bem a nova religião adoptada em Tel El Amarna (a cidade-capital fundada por Akhenaten) que consiste numa constante adoração-celebração do deus-sol (Aten), deus único que é fonte de vida inesgotável para todos os seres, sem considerações de casta ou nível social (segundo dizem, a primeira religião monoteísta da História).

Com efeito neste piso todas as peças são impressionantes, mas por vezes estão dispostas de forma algo atabalhoada, umas atiradas para o meio dos corredores, outras encostadas às paredes, outras meio escondidas por detrás de outras peças, ou em áreas e recantos esconsos, sem que se perceba uma razão, um fio condutor. É verdade que a quantidade de peças é imensa, e há novas sempre a chegar, mas isso não justifica que tantas peças estejam atabalhoadamente expostas…e por etiquetar. É um pouco difícil para o visitante seguir uma linha orientadora; a maior parte do tempo anda-se aos zigzagues (como eu). E quanto à falta de etiquetagem/descrição, parece-me um defeito realmente grave do museu, inclusive porque afeta até algumas das peças mais emblemáticas. Sim, é verdade: as peças estão ali, pousadas, mas é impossível saber o que representam, a idade, a origem, nada (algumas parece que já tiveram uma; pelo menos têm lá a plaquita que parece ter sido uma etiqueta, em tempos). E neste ponto damos de caras com a questão do “burro a olhar para um palácio”, que bem descreve a minha situação em diversos momentos. Ora, é verdade que em parte a culpa é minha; quer dizer, eu até tinha lido e estudado mais, se houvesse informação disponível sobre as peças (no site do globalmuseum só encontrei a descrição de 10 ou 15 peças, no máximo); mas também é verdade que 1) não sou obrigado a contratar um “guia” oficial ou oficioso para me “guiar” dentro do museu; 2) não sou obrigado a comprar um catálogo do museu para conhecer as peças, até porque é mais caro o catálogo do que a entrada no museu (100. Sim, 100 libras é o preço do catálogo. Perguntei só por curiosidade…); 3) não sou obrigado a estudar as peças com antecipação, porque uma das obrigações “públicas” de qualquer museu é, não apenas expor, mas informar. Segue-se, por conseguinte, que é obrigação do museu (de qualquer museu, aliás) etiquetar devidamente as peças expostas, para que o visitante fique com um conhecimento mínimo daquilo que está a ver. A não ser…

Claro, é evidente: está tudo feito para o negócio dos “guias”, dos “tours” e dos catálogos. Quanto menos o visitante souber, mais depressa recorrerá a um guia, mais depressa se lançará a comprar um livreto ou catálogo. Na prática, paga 75 libras só para ver as peças, e mais um tanto ou o dobro desse tanto para perceber minimamente o que está a ver. Aqui se vê onde pára o ideal de ilustração e serviço público…

Vamos ao segundo piso, quase todo dedicado ao acervo de peças do túmulo de Tutankamon, descoberto no Vale dos Reis. Percebe-se, ao ver as peças, o porquê da descoberta do túmulo do faraó-criança ter gerado tanto fascínio a nível mundial, e ter tornado a figura de Tutankamon tão icónica e popular. É que, em primeiro lugar, todas as peças, desde o sarcófago, à máscara funerária, passando pelos objetos pessoais do faraó, não só foram primorosa e ricamente manufaturados e trabalhados, como estão em extraordinário estado de conservação (parece que vieram ontem da fábrica ou da oficina…). A banha de ouro reluz por toda a parte: é nos pequenos tronos, é na cama da criança, é nos acessórios funerários, é no carro de combate, é nas enormes “caixas” funerárias que ocupavam o túmulo, etc. É extraordinária a quantidade de objectos de todo o tipo que foram encontrados neste túmulo, mais do que suficientes para só por si encherem um museu.

Em segundo lugar, a maior parte dos objetos pessoais do rei, sobretudo se pensarmos que pertenceram a alguém que acima de tudo foi uma criança com uma história triste e um fim trágico, despertam-nos um sentimento de ternura e estimulam a imaginação. Falo das pequenas sandálias de pergaminho, quase intactas; das caixinhas de jogos em marfim (quase que conseguimos imaginar a pequena criança, morena, de crânio rapado, a jogar o seu joguito em silêncio, antes de ser chamada a presidir a mais uma cerimónia longa e chata de gente adulta); falo de um busto muito vivo, expressivo e sorridente do pequeno rei, que contribuiu para dar espessura e personalidade humana ao mito; e muitos, muitos outros dos quais já não me recordo; então se falarmos dos objetos rituais, é um sem fim deles.

Outro problema do museu: as múmias. Um dos principais motivos que me trouxe ao Museu Egípcio foi ver de perto a múmia de Ramsés III, e também de Tutmósis, que durante décadas foram das principais atrações deste museu. Não estou certo de como era antigamente, mas sempre tive a ideia de que as múmias sempre estiveram expostas na ala geral, lado a lado com as restantes peças do museu. Talvez esteja enganado, mas era a ideia que tinha. A verdade, para minha desilusão, é que estão expostas numa ala especial, cuja entrada custa basicamente um segundo bilhete: 75 libras! Como digo, não estou certo se foi sempre assim ou não; mas se por acaso é verdade que elas foram movidas para uma ala especial que exige o pagamento de um segundo bilhete… estamos falados.

Terminadas as voltas e os zigzagues pelo segundo piso, desci ao primeiro. Dei mais uma espreitadela em algumas peças que não tinha visto ainda, sobretudo na ala intermédia, em frente ao hall de entrada. Depois dirigi-me à saída (que fica no lado direito do edifício), voltei a passar a mochila pelo detetor, e saí. Era por volta do meio-dia, e o sol batia forte, agressivo, moendo a carapinha (que vale eu tinha o meu super-chapéu).

2ª parte – Check-in no hotel; Compra bilhete para Luxor


Depois de almoçar rapidamente meia dúzia de bolachas energéticas na esplanada do café situado no pátio exterior do museu, finalmente saí pelo portão principal. Eram cerca das 12h30. O meu objetivo seguinte era o de ir à estação rodoviária de Al Maza comprar os bilhetes de camioneta para Luxor, pois tencionava visitar a cidade daí a três dias, e não queria correr o risco de chegar ao dia e não ter bilhete nem de ida nem de volta. No posto de turismo de Alexandria tinham-me dito que esta estação ficava perto de Ramsis, a estação central do Cairo (creio que me falaram em “5 minutos de carro”). Convencido disso, pensei que podia facilmente ir a pé, ou quem sabe apanhar o metro para lá (o Cairo tem metro subterrâneo). Do museu andei umas centenas de metros até à praça Tahir, só para lhe sentir o pulso histórico e tirar uma ou duas fotos, e depois atravessei a estrada para o lado do passeio que contorna a praça e comecei a perguntar às pessoas onde ficava a estação de Al Maza. Perguntei a um rapaz que inicialmente me abordou para me propor um “tour” qualquer, que devia trabalhar oficial ou oficiosamente para uma das agências que existem nessa rua, loja sim loja não. Afavelmente, respondeu-me que eu tinha de ir primeiro à estação de camionetas que ficava por detrás do Museu Egípcio, debaixo do viaduto onde eu tinha apeado nessa manhã, e perguntar se a camioneta que vai para o aeroporto do Cairo passava em Al Maza. Ou seja, mais complicado do que eu pensava.

Como estava muito calor e o sol atestava, decidi ir primeiro ao hotel fazer o check-in e tentar a minha sorte mais tarde. O meu receio era apenas que a estação de Al Maza fechasse demasiado cedo, e nesse dia eu já não fosse a tempo de comprar os bilhetes. Chegado ao pequeno hotel, que fica numa das ruas que irradia a partir da praça Tahir, e depois do check-in, liguei para a estação de Al Maza e pedi por favor ao rececionista idoso que falasse com quem quer que o atendesse para confirmar a hora de fecho da bilheteira (nas minhas próprias tentativas anteriores de contacto, ou não me atendiam, ou quando atendiam e percebiam que eu falava inglês desligavam-me a chamada). “Open 24 hours”, disse-me o rececionista, depois de uma conversa rápida com alguém do outro lado da linha. “Great!”, respondi; ainda tinha tempo.

Fui para o meu quarto, amplo e com duas camas, mas muito quente, fiz uma curta sesta, tomei um banho gelado (água quente, nem vê-la) e voltei a sair. Como ainda era cedo e hora de muito sol e calor (por volta das 15h), sentei-me no pequeno lobby do hotel a fazer horas e a enviar mensagens pela net à família. É um hotel muito simples, de duas estrelas, mas muito bem localizado e com mais de sessenta anos de história. Não tem mais de três pisos, e a receção situa-se no sétimo andar de um edifico com a mesma idade ou superior, com uma entrada muito larga que parece a de uma antiga garagem ou coisa que o valha. O elevador também é muito antigo, e não parece muito seguro, o que como é óbvio me deixou de respiração suspensa do primeiro ao último segundo das minhas ascensões e descensões. E quando perguntei ao vigilante onde eram as escadas, já com a intenção de subir por lá… “Estão fechadas”, responde-me com a maior das naturalidades… Sim, as escadas, que são também de emergência, suponho, estavam fechadas, atravancadas, eu sei lá…

Isto para dizer que o hotel é antigo, que todos os seus traços, paredes, soalho, e até os quadros nas paredes, transpiram influências coloniais francesas, e provavelmente britânicas. Como todas as coisas muito antigas que já viveram tempos mais felizes e áureos, tem um pouco o ar nostálgico de ruína. Mas, pelo menos no que diz respeito à internet wi-fi, soube atualizar-se.

Por volta das 16h estava na rua, e dirigia-me à estação de camionetas por detrás do museu, tal como o rapaz da agência me havia indicado. Perguntei a um homem que devia ter os seus sessentas e muitos, sentado perto de um pequeno quiosque, e que devia ser algum tipo de funcionário ou vigilante da estação, qual das camionetas ia para Al Maza. Não falava inglês, mas percebeu o sentido da minha pergunta e imediata e afavelmente pediu que me sentasse a seu lado, pois a camioneta que eu pretendia devia estar para chegar. Chegou; era o 1007.

A viagem até à estação de Al Maza demorou pelo menos uma hora. A estação, situada na beira de uma estrada, não era mais do que um espaço amplo ao ar-livre, cortado por filas de quiosques tipo contentor, que serviam simultaneamente de bilheteiras e escritórios. Apeei e dirigi-me a um dos contentores para perguntar onde podia comprar bilhetes da Superjet, a empresa de camionetas que tem rotas não só para Luxor, mas também para o Cairo, Alexandria, e outras cidades. Disseram-me que ficava noutra fila de contentores mais à frente; dirigi-me para lá, e finalmente encontrei um quiosque-bilheteira, encimado por uma banda publicitária da Superjet, que mais parecia vender coca-cola que bilhetes. Depois dos costumeiros atropelos na curta fila (chamar-lhe “fila” é abusivo; cá, em qualquer sítio, é perfeitamente normal as pessoas passarem à frente umas das outras), cheguei-me à frente para comprar o bilhete, mas o funcionário parece ter ficado muito admirado e admoestado por me ver; estava ali no meio de uma discussão qualquer que eu fui interromper, suponho, muito mais importante que a minha pretensão de cliente. “Good afternoon”, digo eu, fórmula que uso simultaneamente para me anunciar e para declarar, sem mais delongas, que não falo arábico. O homem faz uma expressão do tipo “que é que tu queres?”, como se não fosse normal as pessoas irem ali comprar bilhetes, e pergunta, num inglês esforçado mas num tom desagradado, como quem foi incomodado, “What do you need?”. “What do you need?!?”, respondo eu devolvendo a pergunta; “I need tickets!”. A conversa revelou-se difícil, porque ele praticamente não falava inglês (“fifty-fifty”, disse ele) e era mais do que evidente que o senhor queria era despachar-me rapidamente. Tentei explicar-lhe que queria um bilhete de ida para dia 13, sábado, e outro de volta para dia 15, terça-feira. Quando ao primeiro, tudo bem; lá me explicou que havia bilhete para sábado, mas com partida às 22h e chegada às 7h, o que eu já sabia. Mas quando lhe repeti que queria comprar também o bilhete de volta, imediatamente me respondeu num tom de grande impaciência que só podia comprá-lo em Luxor… Ou seja, depois de chegado a Luxor, após dez extenuantes horas de viagem de camioneta, é que eu podia saber se teria ou não bilhete para voltar no dia a seguir…

Embora eu quisesse muito ir a Luxor - em particular para visitar o extraordinário e intrigante Templo de Luxor, e talvez Karnak -, não podia dar-me ao luxo de ir sem ter a certeza de que podia voltar na data prevista. Uma noite a mais de hotel faz diferença para o “turista pobre” que anda com o dinheiro todo contado. Além do mais, no dia 15 ou 16, segundo tinha sido informado pela AIESEC, teria mudar de casa, pelo que não me podia dar ao luxo de voltar depois desse dia (vinha aí uma nova semana de adaptação, a pouco mais de 15 dias de voltar para Portugal…). Na viagem de regresso ao Cairo vinha a magicar como raio é que eu podia ter a certeza de que poderia comprar o bilhete de volta em Luxor…

Ora: no bilhete de ida estava escrito um número de informações da Superjet, em arábico (naturalmente). Uma vez chegado ao hotel, pedi ajuda uma vez mais, mas desta feita a outro rececionista; pedi que ligasse para esse número e perguntasse se eu podia estar certo de ter bilhete de volta para dia 15, se, uma vez chegado na manhã do dia 14, o comprasse imediatamente na estação de Luxor. Ele ligou, trocou meia dúzia de palavras com alguém do lado de lá, e desligou. Disse-me que sim; decididamente podia comprar o bilhete lá, desde que o fizesse impreterivelmente à chegada na manhã do dia 14, domingo. Mas como estar absolutamente certo?

Como se verá, no fim desta viagem de dois dias ao Cairo, e ponderadas todas as variáveis, acabei por deixar cair a viagem a Luxor. Mais à frente perceber-se-á melhor o porquê.

O dia já ia muito longo (e também já vai muito longa esta narrativa). Enquanto jantava quatro ou cinco fatias de pão Baladi no quarto de hotel, compradas num mercadito lá perto, comecei a preocupar-me seriamente com o modo como haveria de chegar ao Planalto de Guiza (Pirâmides) na manhã do dia seguinte. Nessa manhã, o rapaz que eu conheci no minibus que me levou ao Cairo disse-me que havia uma estação de metro em Guiza, e que daí podia apanhar um minibus por duas ou três libras até ao Planalto. Mas, uma vez mais, como ter a certeza? Umas vezes dizem que é perto quando é longe; outras vezes longe quando é perto... Nunca se pode estar absolutamente certo. E quando se está sozinho pela primeira vez numa cidade tão grande (o Cairo é simplesmente gigantesco; cabem, disseram-me, quatro Alexandrias, e Alexandria já é grande o suficiente para nele caberem cerca de quatro milhões de habitantes…), a incerteza é maior ainda. E depois das estopadas deste primeiro dia, a pé, de minibus e de autocarro, começou a parecer-me pouco sensato palmilhar a pé e de transportes todo o caminho que vai do centro do Cairo ao subúrbio periférico de Guiza, a dezenas de quilómetros do centro, correndo um sério risco de me perder e chegar lá depois da hora de abertura, ou de chegar lá tão esgotado que não fosse capaz de apreciar devidamente aquelas maravilhas.

Nesse sentido, a proposta que umas horas antes, ao check-in, o rececionista fez de me disponibilizar um condutor do hotel para me levar e trazer de Guiza, e que eu na altura prontamente recusei, começou agora a parecer-me bem mais tentadora. Afinal, o que são 20 dólares (150 libras, cerca de 17 euros) para se ser levado e trazido de volta, a tempo e horas, sem desvios, sem desorientação, sem desperdícios de tempo e energia, sobretudo quando está em jogo a visita de uma vida, com a qual se sonhou e pela qual se esperou tanto? Cheguei a pensar: e se simplesmente apanhar um táxi na rua que me leve lá, não será mais barato? Depois percebi que não, visto que eles cobram ao quilómetro, pelo que quase de certo me ficaria mais caro.

Vesti-me e dirigi-me à receção, decidido a saber mais informações (sou muito desconfiado). O rececionista confirmou que sim, que de facto têm um motorista que trabalha para o hotel, e que o preço total para ser levado e trazido de Guiza era de 150 libras. O motorista deveria levar-me lá, esperar por mim lá, e trazer-me de volta. Se eu aceitasse teria de fazer o pagamento imediatamente, e diretamente ao hotel, que depois contactaria o motorista a solicitar o serviço e a confirmar a hora a que me viria buscar de manhã. Finalmente aceitei; o rececionista ligou para o motorista e confirmou a hora: 8h15. Fui ao quarto buscar o dinheiro, paguei e pedi um recibo, como de costume. Mas… por qualquer razão que nunca cheguei a entender bem, o rececionista não me queria dar recibo! Subitamente, o verniz daquela simpatia e solicitude quebrou-se ao meu pedido. Porquê? “No receipt”, disse ele. Creio que ele ficou confuso, pois só passam recebidos das dormidas, mas sendo o serviço de motorista prestado pelo hotel, argumentei eu, tinha de me passar recibo! Quando eu já estava pronto a pedir o dinheiro de volta, entra outro colega na receção, o tal que me tinha ajudado umas horas antes com a chamada para Luxor. Este, quando percebeu a minha exigência, trocou umas palavras com o colega como quem diz “passa-lhe o recibo!”; este, meio contrariado, já meio esfumada a simpatia inicial, e sem me olhar nos olhos, lá escrevinhou no papel do recibo qualquer coisa como “Trip receipt – 150 pounds”, e entregou-mo. Para quê complicar??

Eu percebo: estas coisas não são feitas de modo oficial, mas de modo “oficioso”, tudo entre amigos. Recibos e registos para quê?

Antes de ir para o quarto ainda fiquei uns instantes na receção, a folhear alguns dos livros e revistas em inglês e francês que constituem a pequena livraria do hotel, e que se foram empilhando ao longo de anos de esquecimentos, abandonos, e ofertas quem sabe, dos muitos clientes que por lá passaram. Estava muito cansado, mas ao mesmo tempo inquieto; não me apetecia ir já fechar-me naquele quarto fechado a abrasado. Depois lá acabei por ir.

Finalmente, depois de mais um banho de água fria (com o calor até sabe bem), fui-me deitar. Os acontecimentos do dia, a incerteza, tudo isto dançava na minha cabeça e mantinha-me desperto. Tentei focar-me no principal: na manhã seguinte, se deus quisesse, iria finalmente ver as pirâmides de Guiza com os meus próprios olhos, e estar face a face com a Esfinge.