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sexta-feira, 10 de julho de 2015

Lisboa - vários (julho de 2015)


Regressado do Egipto, trouxe comigo ainda bem vivo esse "olhar primordial" capaz de deslumbramento. Viajar é olhar - cada vez mais acredito nisso. No espaço, no tempo ou no pensamento, viajar é olhar. Chegado a Lisboa - onde estive alguns dias antes de ir para o Porto -, foi como se visse a cidade pela primeira vez - limpa, organizada, inspiradora, cosmopolita, alva, luminosa, alegre, cheia de vida. E, não obstante ter andando por lugares bastante conhecidos e familiares, deixei-me cativar por aspetos e pormenores completamente novos, capazes só por si de renovarem os lugares inteiros, de lhes conferirem um novo espírito, um lustro de novidade, e até de esperança. É claro que, como diz o provérbio antigo, vemos o que somos; e só um olhar em si mesmo renovado pode ver coisas renovadas. Trouxe a esperança dentro de mim, é verdade. Tendemos a pintar a natureza com as cores do espírito - dizia R. W. Emerson. E claro, é preciso ter o espírito leve; um espírito pesado é um espírito obnubilado. Em resumo, pode-se ser turista em qualquer lugar, desde que se saiba olhar.


Pelos jardins da Gulbenkian...





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Tejo, a dar-me as boas vindas (um vislumbre e um deslumbre)





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Arco da Vitória, sob uma nova luz, sob um novo olhar





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Pormenor de um monumento de homenagem a um rei português (quem será?). Passei a apreciar muito mais os olhares esfíngicos...  





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Rua Augusta





Escadaria algures no Chiado





Algures em Belém...





Monumento a Afonso de Albuquerque, o nosso Grande das Índias
"If you are to bring the riches of the Indies, you have to carry in yourself the riches of the Indies." (provérbio autor desconhecido)



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Palácio de Belém (vista do interior, a partir do pátio do Museu da Presidência)





Museu da Presidência - Sala dos retratos






Teófilo Braga (2º presidente da 1ª república) - Um intelectual excecional e um político em tempos de exceção. 





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Decreto original de indigitação de Francisco Sá Carneiro como primeiro-ministro, assinado por António Ramalho Eanes, presidente da república portuguesa (5 de janeiro de 1980)





Carta papal assinada por João Paulo II



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quinta-feira, 2 de julho de 2015

De volta a Guiza (Dentro da Grande Pirâmide) - Crónica ilustrada





(As fotos vão sendo referenciadas ao longo do texto, e são todas apresentadas no final devidamente numeradas, ao invés de serem apresentadas no corpo de texto)

De volta a Guiza - 24 de junho de 2015

Enquanto no meu Porto se vivia o rescaldo da noite de folia são joanina, eu regressava a Guiza para fazer o que não consegui fazer na primeira visita: entrar na Grande Pirâmide.

Estive quase para não ir. Estas viagens, como se pode constatar pelas crónicas anteriores, têm sempre as suas dificuldades e os seus riscos, pelo que a dada altura achei por bem dar-me por satisfeito com a primeira visita, e ficar por Alexandria a aguardar comodamente o dia de regresso a Portugal, que já estava para muito breve, sem me meter em mais aventuras.

Mas o apelo foi mais forte. E como diz o Alberoni, quem ouve o apelo pode partir ou não, mas se não o fizer tornar-se-á de pedra e a sua vida descerá ao nível do chão… é mais ou menos isto. Senti que devia fazê-lo sobretudo por uma questão de caráter, de superação, em vez de ceder ao comodismo baseado em receios infundados. Se o fizesse talvez um dia me viesse a arrepender; afinal, não sei quando ou se alguma vez terei a oportunidade de voltar ao Egipto. Não é de covardia e falsa prudência que os homens se fazem.

Além do mais, o “prémio” de estar dentro da Grande Pirâmide, de visitar a Grande Galeria, de entrar na misteriosa Câmara do Rei, valia bem uma pequena medida de desconforto e risco, nada aliás a que eu já não estivesse bem habituado depois de 4 meses a viver, a trabalhar, e a bater sozinho todos os principais pontos de interesse de Alexandria, em particular os locais históricos. Inclusive tinha planeado tão bem a primeira visita que desta vez restava pouco ou nada para planear. Eu sabia exatamente onde ir, que transportes apanhar, o que fazer – pelo menos em teoria. Tinha tudo escrito. Iria de manhã e voltaria de tarde – qual a dificuldade?

Por conseguinte, lá fui. Por volta das 5h45 estava a sair de casa, que depois da mudança se situava agora perto do extremo oriental da cidade, numa zona chamada muito apropriadamente “Miami” por estar localizada numa pequena península que entra mar adentro, de tal modo que, estando parcialmente rodeado pelo mar, era capaz de vê-lo da minha varanda, tanto à esquerda e à direita.

Eu sabia que podia apanhar uma camioneta diretamente para Guiza, a partir de Alexandria, mas para tal teria de me dirigir à estação de Al Mawkaf El Gedeed, a estação rodoviária principal da cidade, que fica um pouco longe do centro. Eu sabia também que podia apanhar um minibus para lá, a partir da estrada da marginal, mas não estava certo de poder fazê-lo a partir de “Miami”, por se situar do outro lado da cidade, perto do extremo oriental.

De qualquer modo, experimentei. Comecei a fazer o sinal gestual correspondente a esta estação rodoviária, à espera que algum minibus parasse em resposta. A estrada, a estas horas da manhã, estava quase deserta, mas a dada altura, passados alguns minutos, um minibus parou. Como era a primeira vez que me dirigia à estação de Al Mawkaf El Gedeed, e esta não fica perto de nenhuma outra zona que eu conheça da cidade, confirmei com o motorista se ele de facto se dirigia para lá, não oralmente - porque encontrar um motorista de minibus que fale inglês é uma raridade -, mas mostrando-lhe um rectângulo de papel onde, na noite anterior, eu tinha pedido ao meu colega de casa do Bahrein que escrevesse de forma ampla e legível a versão em arábico do nome da estação. O motorista leu e confirmou o destino; seguimos.

Chegado à rodoviária foi tudo muito simples. Perguntei à entrada onde ficava o balcão da Superjet - a empresa que faz a rota Alexandria-Guiza -, e dirigi-me para lá. A minha intenção inicial era ir na camioneta das 7h30, pois não sabia exatamente quanto tempo demoraria a viagem – tinham-me dito cerca de 4 horas -, e queria chegar cedo, antes das 12h, a suposta (sublinho, suposta) hora de abertura aos turistas da Grande Pirâmide (lembram-se? Tinha-me dito um dos cameleiros em Guiza, na primeira visita). Mas como cheguei à rodoviária pouco antes das 6h30, o funcionário do balcão, que contra todas as minhas expetativas iniciais falava um bom inglês e era bastante simpático, perguntou-me se não queria ir logo na próxima camioneta, que era precisamente a das 6h30. Eu claro, disse que sim. Quanto ao bilhete, disse-me ele, podia comprá-lo dentro da camioneta, que já estava à espera no hangar.

A viagem correu bem, e a camioneta era confortável, apesar de ir cheia. Como não havia muito trânsito àquela hora, não demorei mais de 3 horas a chegar ao Cairo, e mais uns trocos a chegar a Guiza, a primeira paragem, sendo que a última era a estação rodoviária de Al Maza – a estação onde estive da primeira vez para comprar os bilhetes para Luxor, recordam-se?

A pequena rodoviária de Guiza fica numa parte da cidade que eu desconhecia completamente, e que desmente em larga medida aquela ideia com que fiquei quando lá cheguei na primeira vez – a de uma cidade de subúrbio, pequena, a fazer lembrar o faroeste. Pelo contrário, aquela parte da cidade parecia bastante desenvolvida, com avenidas e ruas largas, muita gente e muito trânsito, a parecer-se mais com uma qualquer zona do centro do Cairo do com um subúrbio. Como percebi mais tarde, a cidade de Guiza não é de todo uma cidade pequena.

Da pequena estação rodoviária tinha ainda de chegar às pirâmides, que ao contrário do que eu imaginava não ficam propriamente perto, pelo menos tão perto que se possa ir a pé. É preciso apanhar um táxi que, se o trânsito ajudar, leva no mínimo 25 a 30 minutos a lá chegar. Foi o que fiz; o taxista pouco ou nada falava inglês, e foi a custo que lhe consegui explicar que queria ir para as pirâmides, e também a custo que acertamos o preço (30 libras). Para andar de táxi no Cairo, como em Alexandria, é preciso ter sempre o cuidado de confirmar o preço de antemão, caso contrário é certo que haverão surpresas desagradáveis.

Pouco antes de chegarmos ao Planalto começaram a aparecer os “assediadores” do costume, os tais que, tal como da primeira vez, ao mínimo cheiro a turista não hesitam em “assaltar” despudoradamente os carros, chegando a fazê-los parar, quando não mesmo a entrar neles (com a cumplicidade mais ou menos tácita dos taxistas), apresentando-se como “guias especializados” e vendendo toda a espécie de tours a cavalo, camelo e o que quer que os valha. Desta vez foi precisamente isso que aconteceu: um destes “guias” obrigou o meu táxi a parar, e depois de cumprimentar o taxista como se fossem amigos de longa data - gesto que traiu uma provável cumplicidade entre os dois - entrou descaradamente no carro e sentou-se no banco de trás, começando imediatamente a incomodar-me com propostas disto e daquilo, tipo mosquito que não desgruda. Chegou a ponto de me mostrar um cartão que o identificava, dizia ele, como guia habilitado pelo governo, e de me garantir que, como estávamos no mês do Ramadão, ser-me-ia impossível entrar no Planalto sem um guia como ele, dado que as principais entradas estariam fechadas aos turistas… e outras balelas. Eu, já irritado com aquilo - com o “guia” por um lado, e com o meu motorista por outro por o ter deixado entrar no carro -, só lhe dava negas, e a certa altura deixei mesmo de lhe responder e só pedia ao motorista para seguir em frente (“Go ahead! Go ahead!”, dizia). O suposto “guia” insistia – “What about a camel ride? And a horse ride?” -, até que por fim chateei-me a sério e lhe respondi, já alterado, que não precisava nem de cavalos nem de camelos, num tom de voz ríspido que traia a minha impaciência, e que lhe deixava pouca margem de manobra. O “guia”, percebendo que já não tirava nada dali, saiu do carro embirrado e a gritar que se eu quisesse então que fosse sozinho e que visse por mim próprio… Tal como vim a constatar e naturalmente já desconfiava, com Ramadão ou sem Ramadão, entrava-se no Planalto com a mesma normalidade que em qualquer outro dia do ano… Enfim.

Finalmente o táxi deixou-me junto a uma outra entrada do Planalto que eu desconhecia, na parte alta, perto da vertente norte da Grande Pirâmide. Pareceu-me ser a entrada principal. Da primeira vez, como se recordam, o condutor do hotel deixou-me numa outra entrada - a entrada-este - na parte baixa do Planalto, junto à esfinge, numa parte da cidade tão diferente que parece outra pertencer a outra cidade, embora não diste mais de um quilómetro da outra entrada.

Entrei por um portão gradeado e subi uma longa estrada que leva à bilheteira, de onde já se impõe de muito perto a figura geométrica e apetecível da Grande Pirâmide. Comprei os dois bilhetes necessários à minha visita, o normal de entrada no Planalto, e o específico para entrar na Grande Pirâmide. Por qualquer razão que me ultrapassa, nesta bilheteira o custo do bilhete de entrada no Planalto é de 80 libras, menos 5 libras que na bilheteira por onde entrei da primeira vez. Das duas uma: ou o preço baixou entretanto, ou ele varia consoante a entrada. Não sei. Já para entrar na Grande Pirâmide, o preço foi de 200 libras, tal como o esperado.

Desta feita não havia “bandos de oficiosos” à entrada, a assistir os turistas. Apenas uma funcionária assistia à passagem das mochilas pelo detetor, numa sala vazia, já que o número de turistas aquela hora era bastante reduzido.

Finalmente entrei no Planalto, e intimamente rejubilei por estar ali de novo, e por de novo ter a oportunidade de contemplar de tão perto aquelas maravilhas. Valeu bem a pena ter voltado.


No interior da Grande Pirâmide


Diagrama do interior da Grande Pirâmide
(clique para ampliar)

A entrada na pirâmide faz-se através de uma abertura escavada na pedra, entre a sexta e a sétima fila de blocos, onde se chega através de uma escadaria (Fotos 1 e 2). Esta entrada não corresponde à entrada original, pois esta e o túnel subsequente só foram escavados no séc. IX d.C. pelos árabes, às ordens do Califa al-Mamoun.

Antes de entrar, um segurança já não muito jovem, bem sentado à entrada, fez uma inspeção exaustiva à minha mochila, a tal ponto que achei abusiva. Mexeu e remexeu, abriu bolsos, viu o fundo, abriu o envelope com os documentos, e até as canetas que eu tinha espalhadas pelo fundo da mochila inspecionou. Por momentos senti que estava no aeroporto... Um guia que também estava à entrada, percebendo o meu incómodo a raiar a indignação, justificou este procedimento dizendo que na semana anterior um alemão tinha conseguido levar uma navalha para o interior da pirâmide, e tinha sido apanhado a arrancar da pedra um cartuxo de hieróglifos com o nome de Khufu… Nesse caso eu pergunto: para que serve o detetor de metais na entrada principal? Além do mais, tanto quanto eu saiba, não existe qualquer cartuxo com o nome de Khufu (ou Keóps) dentro da pirâmide, não pelo menos na parte acessível aos turistas, que não é particularmente abrangente. Existe sim um cartuxo que contém o nome de Khufu, mas que está localizado numa das cinco chamadas “câmaras de descompressão”, por cima da Câmara do Rei, numa zona não apenas praticamente inacessível, como também completamente vedada aos turistas. Por isso, apesar de na altura eu ter aceite aquela justificação, não demorou muito a que caísse em mim e percebesse a sua fraca plausibilidade.  

Entrei finalmente por um túnel iluminado, cavado na pedra, que me conduziu à entrada de um outro túnel muito baixo e estreito (Foto 3), algo claustrofóbico, que sobe aí uns um cinquenta metros na diagonal com uma inclinação bastante acentuada, até desembocar na Grande Galeria. Este estreito túnel também foi aberto no seguimento dos trabalhos de Al Mamoun, já em plena era islâmica. Subi-o completamente curvado, quase a gatinhar, através do moderno passadiço de madeira que serve de escadaria. Finalmente, depois de passar um pequeno vão, a estreiteza deu lugar à largueza: tinha entrado na famosa Grande Galeria (Foto 4 e 5), um espaço que, embora relativamente estreito, tem um pé direito de cerca de seis, sete metros de altura, e uma inclinação também bastante assinalável, que nos conduz sempre a subir até à misteriosa “Câmara do Rei”, bem no coração da pirâmide.

Já tinha lido bastante sobre a Grande Galeria, mas nunca tinha visto por mim próprio. Realmente quem tenha algum bom senso, sem precisar sequer de ser arqueólogo ou engenheiro, percebe facilmente que um espaço com aquela inclinação e relativa estreiteza, sem nenhuma espécie de escadaria original funcional, muito dificilmente pode ter servido para transportar um sarcófago, ou uma múmia que fosse, até ao seu suposto último repouso na “Câmara do Rei”. Além do mais, a aridez e a simplicidade quase mecânica e funcional daquelas amplas paredes, daquele teto, sem a mais pequena inscrição, o mais pequeno relevo, a mais pequena ilustração, não condiz minimamente com a teoria de que todo aquele espaço foi construído para servir de morada eterna a um faraó supostamente megalómano e com a mania das grandezas. Quem quer que já tenha visitado o Museu Egípcio, ou por exemplo, o Louvre, sabe perfeitamente que as paredes interiores de qualquer túmulo de qualquer era da civilização egípcia estão sempre repletas de intermináveis inscrições hieroglíficas, de cima a baixo e de lado a lado, seja os textos rituais do Livro dos Mortos, seja histórias a exaltar a vida do faraó morto de forma a preservar a sua memória, etc.

Na antiguidade, um túmulo não era concebido apenas como um mero “armazém” para o corpo do faraó, mas antes como um templo de eternidade cuja única vocação, em cada um dos seus detalhes, era a de garantir a ressurreição do rei morto, isto é, garantir que a sua alma conquistaria a vida eterna, bem como celebrar e preservar a sua memória. Deste modo, do maior ao mais ínfimo pormenor, tudo tinha que ter um propósito, uma função, uma finalidade bem determinada; nada podia ser deixado ao acaso, que era sempre visto como uma perigosa cedência às forças aniquiladoras do caos.

Parece-me, neste contexto, que espaços em branco e paredes vazias põem em causa a indispensabilidade atribuída na antiguidade aos chamados “textos funerários”; e ainda que um túmulo tivesse lacunas e paredes vazias, sem qualquer inscrição, tal seria sempre visto com um profundo desrespeito pelo faraó, um descuido imperdoável que poderia pôr em causa irremediavelmente a conquista da vida eterna por parte do rei, condenando para sempre a sua alma à aniquilação e ao esquecimento.

Mais ainda: é pouco plausível que num edifício como a Grande Pirâmide, construído com tanta mestria e perfeição, capaz de resistir quase intocado à passagem dos milénios, pudessem ter ocorrido tais descuidos, em especial se o propósito da sua construção fosse efetivamente o de guardar o corpo do faraó, preservar a sua memória, garantir a sua ressurreição.

Dito isto, é realmente pouco plausível que a Grande Galeria tenha tido um propósito eminentemente funerário, pelo que a sua verdadeira função contínua em aberto, como admitem os investigadores mais eminentes e menos comprometidos com a ortodoxia académica.


Na "Câmara do Rei"

O mesmo podemos afirmar relativamente à chamada “Câmara do Rei” (peço desculpa não ter tirado qualquer foto desta câmara, mas por um lado era proibido, e por outro um certo “temor pela sagrado” impediu-me; é realmente o que esta câmara inspira. De qualquer modo é facílimo encontrar fotos e diagramas delas na internet, para quem tiver curiosidade). Esta consiste numa câmara bastante ampla, mas vazia, com ar de desolação, toda edificada e perfeitamente vedada por grandes blocos de granito vermelho muito escurecido, magnificamente talhados, onde, mais uma vez, é por demais eloquente a ausência flagrante de textos funerários; nem o mais pequeno símbolo ou inscrição, nem sequer a mais pequena alusão ao nome de Khufu. A única peça que lá existe, ao fundo da câmara, à direita de quem entra, e que sugere um propósito funerário, é um pequeno sarcófago sem tampa, um pouco danificado, admiravelmente talhado e cavado a partir de um bloco único de granito vermelho, tão escurecido como a restante câmara. Lembra um pequeno “lagar” cavado diretamente num bloco maciço de granito vermelho – que, vale a pena sublinhar, é das rochas mais duras que existe - há milhares de anos, e por artesãos que, supostamente, não possuíam mais do que martelos e cinzéis de ferro e bronze… As superfícies interiores, em particular, são particularmente lisas e polidas. Mais uma vez, é gritante a ausência de quaisquer inscrições, relevos e ilustrações. Todos os sarcófagos e túmulos que já vi, tanto no Museu Egípcio como no Louvre, tinham não apenas dimensões impressionantes – algum fazendo lembrar salas de pedra -, como estavam completamente cobertos de relevos e inscrições, por dentro e por fora. Ora, isto é tudo o que este pequeno “sarcófago”, ali misteriosamente instalado na Câmara do Rei, não tem e não é. Logo, considero muito difícil acreditar que alguma vez ali tenha estado sepultado um faraó, muito menos um tão grande, poderoso e supostamente megalómano quanto Khufu.

Outro aspeto surpreendente na chamada “Câmara do Rei” é que ela não possui uma entrada no sentido convencional, isto é, à escala humana, adaptada à entrada de seres humanos, e muito menos a seres humanos carregando sarcófagos. Seria de esperar que uma câmara tumular possui-se uma entrada suficientemente ampla, no mínimo à escala humana, ou no mínimo que permitisse a passagem de um grupo de homens carregando um sarcófago. Pelo contrário, a pequena suposta “entrada” que existe consiste num pequeno túnel com pouco mais de um metro de altura com o mesmo de largura, se tanto, e talvez dois a três metros de extensão, o que torna não apenas muito pouco prática a passagem de um homem, como no mínimo impraticável a de um grupo de homens carregando um sarcófago. Por isso é impossível que alguém com bom senso não questione o verdadeiro propósito daquele túnel, que parece ter sido feito para tudo menos para permitir a passagem de seres humanos, e, por maioria de razão, o verdadeiro propósito da Câmara do Rei, e o da pirâmide como um todo.

Dentro da Câmara do Rei pesa um silêncio sepulcral; ali, incrustrada no centro da pirâmide, as várias camadas de blocos de pedra isolam-na completamente do exterior, criando quase uma espécie de dimensão à parte. Sentimos uma curiosidade natural por aquele silêncio, somos levados a experimentá-lo, calando e "ouvindo". Naquela sala enorme, ouve-se claramente - como eu ouvi! - o pingar intermitente de uma gota de água. E se damos um grito ou falamos um pouco mais alto, o som projeta-se ecoando por toda a pirâmide; toda a pirâmide vibra, e sente-se como se o som "escalasse" pelas várias camadas de pedra até chegar ao exterior. É extraordinário.


De volta ao exterior da Grande Pirâmide – o cemitério oeste

Depois de sair e tirar algumas fotos no exterior (Fotos 6 a 12), chamou-me a atenção um pequeno templo, a noroeste da Grande Pirâmide, para o qual me dirigi. Este pequeno templo em forma de L abre-se para um amplo pátio exterior, e possui duas entradas, cada uma majestosamente enquadrada por duas grossas colunas cilíndricas e um entablamento retangular (Fotos 13 e 14). Por toda a parte ao longo das suas paredes encontramos misteriosas inscrições hieroglíficas e relevos de figuras humanas (Fotos 15 a 18). Foi a primeira vez, das duas vezes que visitei o Planalto, que encontrei inscrições e relevos. Mais tarde compreendi porquê: este templo, em conjunto com um número bastante considerável de outros pequenos templos que existem ao longo da vertente oeste da Grande Pirâmide, faz parte de um complexo designado por “cemitério oeste” (Imagem 1). Isto é, este templo, tanto quanto pude investigar, não é mais do que um túmulo, semelhante a vários outros túmulos que existem nesta parte do Planalto, e que pertenceram a altos dignitários do Antigo Egipto. Estes, em conjunto com os túmulos do chamado “cemitério este” (Idem), são, atrevo-me a dizer, os únicos verdadeiros túmulos do Planalto, e não as pirâmides. Por isso, não admira que estejam pejados de inscrições e relevos, tal como seria de esperar de um qualquer túmulo do Antigo Egipto.

Passei largos minutos a explorar o exterior daquele pequeno templo (as entradas, fechadas com portas gradeadas de metal, estão vedadas aos turistas), a absorver os seus detalhes, a sentir a “vibração” típica do seu ambiente, e a estranha harmonia que emerge da sua relação com os outros elementos do Planalto. Dali vi que mais à frente existia uma faixa de pequenos templos funerários semelhantes, embora bastante mais pequenos, paralela à toda a vertente oeste da Grande Pirâmide, e uns níveis acima do pátio deste primeiro templo. Dirigi-me para lá. Depois de atravessar todo o pátio e subir um pequeno muro, estava perante este vasto campo de templos tumulares, uns em boas condições de conservação, outros em total ruína (Fotos 19 a 21). Por todo aquele chão arenoso estavam espalhados blocos de construção, pequenas colunas e estelas funerárias (suponho) atravessadas por ténues linhas de hieróglifos já bastante desgastadas, e mesmo lacunares, fruto da erosão dos milénios (Fotos 22 e 23).

A maior parte dos túmulos, sobretudo os que se encontram em bom estado de conservação e possuem estelas funerárias ou inscrições hieroglíficas e relevos nas paredes interiores, estão vedados aos turistas, fechados e trancados por portas metálicas gradeadas. É pena, porque alguns daqueles belos túmulos mais parecem barrancos, e todas aquelas peças, todos aqueles textos e relevos, estariam melhor expostos do que escondidos dos olhos do público. Quem sabe o que se poderia aprender com elas; quem sabe que mistérios escondem ainda.

Por exemplo, fiquei bastante curioso com um destes relevos que fui capaz de divisar na parede do fundo de um dos túmulos, mas em lado nenhum está explicado o seu significado. Ele mostra duas figuras humanas perfiladas segurando o mesmo estranho objeto, que lembra uma espécie de mangueira; o homem da frente aponta a “boca” deste objeto para a frente, segurando-o na dianteira com a mão esquerda, e um pouco mais atrás com a mão direita, enquanto o homem de trás se limita a agarrar a parte de trás do comprido objeto com as duas mãos. Em suma, ambos parecem estar a cooperar no cumprimento de uma qualquer tarefa, utilizando um objeto ou dispositivo tecnológico desconhecido. E este relevo repete-se pelo menos duas vezes na vertical, um em cima e outro em baixo (Fotos 24 e 25).

Podemos sempre especular, sabendo que a especulação vale o que vale até ser provada ou refutada; e se estes relevos contam a história de uma tecnologia antiga desconhecida, utilizada, por exemplo, na construção das pirâmides?

Por fim, foi com alguma dificuldade que abandonei aquele lugar, e que me dirigi à saída do Planalto. Tinha vontade de ficar ali, até quando exatamente não sei; apenas ficar mais um bocado, “beber mais um copo” daquele néctar, daquela ambiência impregnada de uma estranha espiritualidade. Pensar, pensar; quem sabe meditar, às vezes rezar.

Deve ser assim que é suposto sentirmo-nos quando estamos um lugar que parece ter vencido o tempo, adquirindo um inamovível estatuto de eternidade, ao ponto de se ter tornando ele próprio num sinónimo e símbolo da eternidade; um lugar que parece aproximar-nos do Ser, do fundamento do real. Deve ser assim.


                                                   Fotos e imagens
                                                   (clique para ampliar)


Foto 1 - Entrada da Grande Pirâmide

Foto 2 - Idem

Foto 3 - Túnel em direção à Grande Galeria

Foto 4 - Grande Galeria

Foto 5 - Idem, mais perto do topo

Foto 6

Foto 7

Foto 8 - Um dos blocos da base da pirâmide

Foto 9

Foto 10 - Ao centro, a entrada original da Grande Pirâmide (segundo se crê)

Foto 11 - Mais um bloco de base, pouco mais baixo que eu.

Foto 12


Foto 13 - Templo tumular a noroeste da Grande Pirâmide

Foto 14 - Idem, mais emplastro

Foto 15 - Baixo relevo

Foto 16 - Coluna e relevo à direita da coluna

Foto 17 - Vista aproximada do relevo da foto anterior

Foto 18 - Mais um relevo

Imagem 1 - Mapa do Planalto de Guiza com indicação dos cemitérios oeste e este (western and eastern cemeteries), bem como outros elementos

Foto 19 - Túmulos do cemitério oeste

Foto 20 - Idem

Foto 21 - Túmulo

Foto 22 - Estela funerária (?)

Foto 23 - Coluna

Foto 24 - Estranhos relevos de homens manuseando um estranho objeto

Foto 25 - Idem, imagem aproximada