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sábado, 20 de junho de 2015

Viagem ao Cairo - Dia 1 (Museu Egípcio e outras histórias) - Crónica


Quarta-feira, 10 de junho de 2015


1ª Parte – Viagem para o Cairo; Visita ao Museu Egípcio


O dia começou muito cedo. Às 4h30 estava a pé, e às 5 estava a sair de casa. Já era dia claro. A cidade estava ainda meio a dormir; ainda não se ouviam os pregões dos condutores de minibus (minibus é uma pequena carrinha de 9, 10 lugares, que serve de transporte público) -  “Falaqui! Falaqui!”, pregam eles – postados do lado de cá da linha do comboio, à espera de encherem os carros. Ainda era muito cedo, mas pelo menos do outro lado da rua, como eu esperava, estavam postados os minibuses que vão para os lados de Sidi Gaber, a estação de comboios onde tencionava apanhar o minibus que me levaria ao Cairo.

Nem foi preciso perder muito tempo a fazer o sinal de paragem gestual específico da estação de Sidi Gaber (Sidi Gaber, tal como aprendi no dia anterior, assinala-se com um movimento pendular da mão em concha, na horizontal, que lembra vagamente o movimento de um comboio na linha; como nenhum minibus tem indicação do destino para onde vai, é preciso fazer o sinal específico e aguardar que algum pare em resposta). Dois minutos depois de ter atravessado a rua parou um minibus em resposta o meu sinal; entrei e partimos para a estação.

Chegado a Sidi Gaber, tinha acabado de apear e dado alguns passos na direção da rua esconsa e escondida, em frente à estação, mas do outro lado da rua principal, onde se apanha o minibus para o Cairo, quando um condutor pregou “Ramsis! Ramsis!”, que era precisamente o meu destino no Cairo, a estação de Ramsis. Logo ali à face da rua, estava o minibus que eu precisava (a competição entre os condutores é feroz, pelo que é normal aquela hora encontrá-los em posições estratégicas, quanto mais expostas melhor).

Entrei, confirmei rapidamente o preço e o destino com o condutor e os passageiros (nunca é demais perguntar uma e outra vez a mesma coisa a várias pessoas, pedir várias opiniões, para evitar mal-entendidos que aqui ocorrem com muitíssima facilidade, dadas as diferenças de língua, e a falta de uma organização a que chamo “amiga do turista”, que implica, por exemplo, uma extrema dificuldade em encontrar quem fale um inglês minimamente fluente, sobretudo entre os condutores, motoristas, e até nos serviços públicos). Às 5h30, carro cheio, partimos para o Cairo.

Foi uma viagem limpa, sem incidentes, tirando uma operação stop cujo sentido não compreendi exatamente, em plena autoestrada, por volta das 6h50. Suponho que a polícia estaria a inspecionar as licenças dos minibuses e outros veículos que pretendiam entrar no Cairo, visto que estes precisam de ter uma licença especial para o fazer. Não sei. Também paramos uma outra vez para meter gasolina. A certa altura ocorreu outro pequeno incidente, em plena auto-estrada que, tivessem as coisas sido diferentes em, digamos, meio metro, podia ter sido antes um grande acidente: depois de uma ultrapassagem estranha, o nosso condutor, meio atrapalhado, lá conseguiu desviar-se, suponho que no último segundo, de um minibus que vinha em direção contrária… Só percebi quando vi o condutor subitamente atrapalhado, de repente obrigado a decidir se ia para e esquerda ou para a direita, e ouvi um “zuuumm” tão súbito e curto quanto estridente, que fez a carrinha abanar, provocado pelo outro carro que vinha em sentido contrário, a rasar-nos à nossa esquerda (percebe-se o porquê de todos os anos, no Egipto, morrerem mais de seis mil pessoas só em acidentes de viação). E um passageiro, dois assentos à direita de mim, com um ângulo de visão muito melhor que o meu, viu com certeza a cena toda desde o início – suponho, por isso, que deve ter visto em flashback não apenas toda a sua vida atual mas também umas quantas vidas passadas, tal foi o salto que deu no assento e a intensidade do gesto de reprovação que fez com a cabeça e com os dentes e a língua…

Bem: depois de sensivelmente 2h30 de viagem, tal como previsto, entramos no Cairo. Pelo caminho fui falando com um rapaz que estava ao meu lado, esclarecendo algumas dúvidas, etc., e foi quando ele me disse que se a minha intenção era ir diretamente ao Museu Egípcio para estar lá na hora de abertura, o melhor era sair antes de chegarmos à estação de Ramsis (na prática, o minibus nunca chegaria a Ramsis, porque, segundo eu percebi depois de ele andar às voltas durante uns vinte minutos, ele não tinha licença para ir mesmo até Cairo…). Foi o que fiz: a certa altura o minibus parou por cima de um viaduto de onde era perfeitamente visível, lá em baixo, umas centenas de metros mais à frente, o edifício rosa do Museu Egípcio, e também o rio Nilo, ali logo em baixo, à direita. O rapaz disse-me que era ali, e eu apeei. Imediatamente vi uma escadaria que ligava o viaduto à rua de baixo. Desci rapidamente, e vi logo, do outro lado da estrada da marginal, à minha direita, o balcão gradeado sobranceiro ao Nilo; entusiasmado, galguei a estrada em duas passadas para vê-lo. E ali estava ele, largo, frondoso, a perder de vista; cheio de história, berço e alimento de uma civilização única, incomparável, que durou (dizem as teorias mais conservadoras) mais de três mil anos, e é ainda hoje fonte de vida para centenas de milhões de pessoas em mais de dez países. Eram cerca das 8 da manhã.

Rio Nilo - foto tirada à chegada ao Cairo

Dali fui rapidamente para o Museu Egípcio. Contornei o edifício para chegar à frontaria, de onde se vê, umas centenas de metros mais à frente, a famosa Praça Tahir – centro administrativo do Egipto, famosa sobretudo pela revolução de junho de 2011. Depois de passar uns quantos gradeamentos postados na praça defronte ao museu, com polícias aqui e ali, sorridentes e bem sentados, e de finalmente perceber como atravessar aquele labirinto, lá cheguei à zona demarcada por marcos negros espetados no chão, onde é suposto os visitantes fazerem fila, paralela à grade adjacente ao alto portão negro gradeado da entrada. Fui o primeiro, mas não demorou muito até estar acompanhado por outros turistas de muitos países, sobretudo vindo em grupos de escursão.

Museu Egípcio
Também não demorou muito até que um conjunto – suponho, já quase “residente” – de “guias” se acercassem de nós oferecendo os seus serviços como guias do museu, falando várias línguas, exibindo o seu conhecimento acerca da história egípcia e suas antiguidades, e alguns já avançando com outras propostas de “tour”, e pacotes especiais e isto e aquilo… Aliás, o que não falta no Cairo são ofertas de escursões e “tours” à medida, a maioria consideravelmente barata, sobretudo para bolsos ocidentais. Vai-se a andar na rua e não faltam grandes e pequenas agências, e gente e abordar-nos nos passeios para oferecer este ou aquele tour, seja um dia inteiro a visitar as pirâmides de Guiza, Sakara e Dashour, seja um cruzeiro no Nilo, etc. etc. A rede é imensa, e pelo que me parece toda a gente faz parte dela, e trabalha para ela, direta ou indiretamente: hóteis, condutores de táxi, guias oficiais e oficiosos, etc.

E o que é certo é que muitos turistas, ali à entrada do museu, aceitaram ser “guiados”, em grupo ou individualmente, por estes “guias” oficiosos; e parece-me, pelo que pude ver, que foram bem servidos, porque alguns destes guias pareciam mesmo entender do assunto (claro que sempre nos moldes da ortodoxia académica ou “mainstream” da história egípcia), e por isso certamente que alguns turistas ficaram muito mais esclarecidos do que eu, que preferi “guiar-me” sozinho pelo meio de todas aquelas inúmeras maravilhas, e na maior parte do tempo parecia um pouco como o “burro a olhar para um palácio” – isto é, abismado, mas a perceber muito pouco ou nada. E isto assenta, a meu ver, num dos problemas fundamentais deste museu; mas já lá irei.
À espera da abertura do museu.

Às 9 abriu as portas. Depois de passar pelo detetor de metais (eu e a mochila), dirigi-me à bilheteira. Primeiro problema, que eu para ser sincero já previa há muito: o preço do bilhete é de 75 libras, 15 libras acima do preço tabelado oficialmente nos principais sites de turismo do Egipto, e, o que é bem mais grave, do preço que o posto de turismo de Alexandria me confirmou mais do que uma vez (60 libras), depois de eu lhes ter perguntado se a tabela de preços disponível no site touregypt.com estava atualizada. Inclusive, disseram-me no posto de turismo que podia encontrar a mesma tabela e o mesmo preço (60 libras) no site oficial da Autoridade Egípcia para o Turismo (egypt.travel.com).

Ou seja, as autoridades do turismo simplesmente não atualizam a tabela de preços das entradas nos monumentos e museus, e continuam sistematicamente a informar mal os turistas, como eu pude confirmar em todas as minhas visitas no Cairo. Vejamos: entrada no Museu Egípcio – preço oficial tabelado, 60 libras; preço real, 75 libras; entrada Planalto de Guiza (Pirâmides e Esfinge) – preço oficial tabelado, 60 libras; preço real, 85 libras; entrada pirâmide de Khufu (que não visitei por falta de tempo, mas está para breve) – preço oficial tabelado, 100 libras; preço real (pasme-se), 200 libras! (o dobro). Este é só um dos problemas que tornam o Egipto pouco “amigo do turista” (pelo menos do turista pobre que não vai em tours à medida e escursões, e que tem de organizar por si as suas deslocações, fazer por si as suas marcações, ir por sua conta e risco); vale-lhes a imensa e incalculável riqueza histórica, cultural e patrimonial deste país, que continua e continuará a atrair centenas de milhares de turistas todos os anos, até ao fim do mundo, apesar de tudo.

Comprado o bilhete, e depois de uma pequena divagação pelo pátio exterior do museu, onde se encontram várias estátuas, obeliscos e estelas em exposição, lá entrei. Pelas regras do museu enunciadas num quadro no hall de entrada, percebi imediatamente, para minha grande desilusão, que não podia tirar fotografias (segundo problema).
Estátua do deus Hórus,
umas das muitas peças expostas no pátio exterior à entrada do Museu
Devia ter previsto, pois aconteceu-me o mesmo nos museus de Alexandria, tanto no de Antiguidades, dentro da Bibliotheca Alexandrina, como no Museu Nacional. Percebe-se que esta é política comum, que vem do topo. O propósito… bem, podemos especular: por um lado, para evitar que se façam réplicas das peças a partir das fotos; por outro lado (e esta parece-me a razão mais plausível), porque as autoridades que gerem o turismo e antiguidades devem achar que, se as pessoas tirarem muitas fotos, vão mostrá-las, exibi-las, e publicá-las em sites, blogs e redes sociais, o que vai fazer com que o número de visitantes do museu diminua; pois se as pessoas podem ver as peças por foto e de graça, para quê ir ao museu? Não me admira que esta seja a principal razão, dado que me parece que é sobretudo assim que as autoridades encaram o seu próprio património histórico: menos como uma fonte de cultura e ilustração, ao serviço de todos, e mais como uma inesgotável fonte de rendimento, um “petróleo” cultural que é preciso fazer render a qualquer custo. Perguntem ao Louvre se perde visitantes por permitir tirar fotos a tudo e em qualquer parte…
Vista mais global do pátio exterior

O museu, há que dizer, é extraordinário, acima de tudo pelo que contém, não tanto pelo modo como está organizado. Desde logo, o acervo é, ele próprio, à escala monumental: cerca de dois milhões de peças, e mais sempre a chegar, organizadas pelas três “idades” principais da civilização egípcia: Império Antigo, Império Novo e Império Tardio (da dinastia ptolomaica à invasão romana), contando também com o pequeno interregno de 17 anos do reinado de Akhenaten, a que se convencionou chamar de “Período Amarniano”. Isto só no primeiro piso!

Está lá (quase tudo): a estátua de Khefren (filho de Khufu) com mais de 4 mil anos, negra e extraordinariamente polida, à escala humana, com Hórus representado por um falcão assente por detrás da cabeça do rei, de asas abertas, como que a “abençoá-lo”; a estatueta de sete centímetros que representa Khufu, pai de Khefren e – suposto, nunca é demais repetir – construtor da grande pirâmide, para servir como seu túmulo - embora nunca, jamais, em qualquer das três pirâmides de Guiza, se tenha encontrado qualquer túmulo, múmia ou inscrição funerária alusiva a qualquer um dos três supostamente lá enterrados (Mikerinos, Khefren e Kheops); entre tantas outras riquezas de valor histórico e cultural incalculável, quase sinto necessidade de colocar o prefixo “inúmeros” em cada um dos tipos de peça: inúmeros-grandes túmulos, inúmeros-sarcófagos, inúmeras-estátuas e estatuetas, inúmeras-estelas, inúmeras-inscrições hieroglíficas, inúmeros-pequenos vasos, potes e taças em alabastro, em mármore, em granito rosa e negro, etc. E todas elas (em particular as respeitantes ao Império Antigo, o que é curioso) de uma perfeição, de um rigor estrutural, de um sentido de propósito, passíveis de deixar em estupor qualquer engenheiro, arquiteto, escultor ou artesão dos nossos dias, e que tornam bastante duvidosa – senão mesmo absurda – a ideia de que os antigos egípcios não possuíam qualquer tipo de maquinaria (electrónica ou de outro tipo), e faziam tudo a martelo e cinzel. Os pequenos vasos, taças, potes, garrafas e outras pequenas peças “continentes” esculpidas em pequenos blocos de alabastro, mármore, granito, etc., são disso exemplo paradigmático: expliquem-me como se esculpe, nestes materiais de dureza superior, circunferências perfeitas, gargalos sem falhas, e interiores bojudos perfeitamente simétricos, às vezes de raio superior ao gargalo, apenas com martelo, cinzéis e outros instrumentos rudimentares... Expliquem-me como se esculpe, apenas com estes instrumentos rudes, as faces exatas e simétricas de uma estátua, de tal forma que quatro mil anos depois ainda se lhe vê o sorriso, o polimento está intacto, e o brilho não se perdeu.

E a quantidade e complexidade imensa dos hieróglifos e símbolos, associados em inscrições intermináveis que cobrem paredes inteiras de túmulos e rolos de papiro com dezenas de metros de extensão; a perfeição, o rigor, a simetria com que eles estão inscritos na pedra ou no papiro, repetindo e reformulando fórmulas simbólicas de acordo com regras e princípios precisos, contendo significados que até hoje apenas traduzimos imperfeita e parcialmente; não consegui – e creio que ninguém consegue – deixar de sentir intimamente que está ali a expressão de uma sólida, vasta, antiga e bem estabelecida “ciência”, pouco compatível com a ideia de uma civilização rudimentar que está a dar os primeiros passos nas artes da civilização... Simplesmente é tudo demasiado competente. Se não fosse por tudo isto, as pirâmides e a esfinge de Guiza seriam, a meu ver, prova mais do que suficiente de que isto não é assim.  

Várias peças são impressionantes neste piso; a pequena exposição dedicada ao Período Amarniano impressionou-me particularmente, em grande parte porque a história do reinado de Akhenaten, o “rei herético”, é por si só impressionante e tem o seu quê de romântica (Akhenaten foi o pai do mais famoso dos faraós, Tutankaten, cujo nome haveria mais tarde de ser alterado para Tutankamon, após a morte de Akhenaten e o falhanço da “revolução” religiosa amarniana). Todas as representações de Akhenaten são intrigantes, sobretudo pela sua compleição física muito pouco natural: face e membros esguios e alongados, caixa craniana de volume e comprimento superior ao normal (característica que alguns dos seus filhos, também representados em estatuária, haviam de herdar), anca e coxas largas de mulher, ausência de órgão sexual masculino (em algumas estátuas é representado nu da cinta para baixo). Vemos isto principalmente nos quatro impressionantes colossos expostos deste faraó.

Esta época viu emergir uma forma inédita e única de naturalismo artístico, que não voltou a repetir-se em toda a história da civilização egípcia; uma arte com “rosto humano”, liberta do formalismo e rigidez da anterior religião de Amon, e que permitia, por exemplo, que a família real (Akhenaten, Nefertiti e filhos) fosse representada, em estatuária e em relevos, em plena convivência familiar ou em troca de afetos (é especialmente interessante uma estátua de Nefertiti a beijar o filho pequeno na boca).

Há uma alegria “edénica”, luminosa e “solar” que transparece nos relevos e figurações deste período, que exprime bem a nova religião adoptada em Tel El Amarna (a cidade-capital fundada por Akhenaten) que consiste numa constante adoração-celebração do deus-sol (Aten), deus único que é fonte de vida inesgotável para todos os seres, sem considerações de casta ou nível social (segundo dizem, a primeira religião monoteísta da História).

Com efeito neste piso todas as peças são impressionantes, mas por vezes estão dispostas de forma algo atabalhoada, umas atiradas para o meio dos corredores, outras encostadas às paredes, outras meio escondidas por detrás de outras peças, ou em áreas e recantos esconsos, sem que se perceba uma razão, um fio condutor. É verdade que a quantidade de peças é imensa, e há novas sempre a chegar, mas isso não justifica que tantas peças estejam atabalhoadamente expostas…e por etiquetar. É um pouco difícil para o visitante seguir uma linha orientadora; a maior parte do tempo anda-se aos zigzagues (como eu). E quanto à falta de etiquetagem/descrição, parece-me um defeito realmente grave do museu, inclusive porque afeta até algumas das peças mais emblemáticas. Sim, é verdade: as peças estão ali, pousadas, mas é impossível saber o que representam, a idade, a origem, nada (algumas parece que já tiveram uma; pelo menos têm lá a plaquita que parece ter sido uma etiqueta, em tempos). E neste ponto damos de caras com a questão do “burro a olhar para um palácio”, que bem descreve a minha situação em diversos momentos. Ora, é verdade que em parte a culpa é minha; quer dizer, eu até tinha lido e estudado mais, se houvesse informação disponível sobre as peças (no site do globalmuseum só encontrei a descrição de 10 ou 15 peças, no máximo); mas também é verdade que 1) não sou obrigado a contratar um “guia” oficial ou oficioso para me “guiar” dentro do museu; 2) não sou obrigado a comprar um catálogo do museu para conhecer as peças, até porque é mais caro o catálogo do que a entrada no museu (100. Sim, 100 libras é o preço do catálogo. Perguntei só por curiosidade…); 3) não sou obrigado a estudar as peças com antecipação, porque uma das obrigações “públicas” de qualquer museu é, não apenas expor, mas informar. Segue-se, por conseguinte, que é obrigação do museu (de qualquer museu, aliás) etiquetar devidamente as peças expostas, para que o visitante fique com um conhecimento mínimo daquilo que está a ver. A não ser…

Claro, é evidente: está tudo feito para o negócio dos “guias”, dos “tours” e dos catálogos. Quanto menos o visitante souber, mais depressa recorrerá a um guia, mais depressa se lançará a comprar um livreto ou catálogo. Na prática, paga 75 libras só para ver as peças, e mais um tanto ou o dobro desse tanto para perceber minimamente o que está a ver. Aqui se vê onde pára o ideal de ilustração e serviço público…

Vamos ao segundo piso, quase todo dedicado ao acervo de peças do túmulo de Tutankamon, descoberto no Vale dos Reis. Percebe-se, ao ver as peças, o porquê da descoberta do túmulo do faraó-criança ter gerado tanto fascínio a nível mundial, e ter tornado a figura de Tutankamon tão icónica e popular. É que, em primeiro lugar, todas as peças, desde o sarcófago, à máscara funerária, passando pelos objetos pessoais do faraó, não só foram primorosa e ricamente manufaturados e trabalhados, como estão em extraordinário estado de conservação (parece que vieram ontem da fábrica ou da oficina…). A banha de ouro reluz por toda a parte: é nos pequenos tronos, é na cama da criança, é nos acessórios funerários, é no carro de combate, é nas enormes “caixas” funerárias que ocupavam o túmulo, etc. É extraordinária a quantidade de objectos de todo o tipo que foram encontrados neste túmulo, mais do que suficientes para só por si encherem um museu.

Em segundo lugar, a maior parte dos objetos pessoais do rei, sobretudo se pensarmos que pertenceram a alguém que acima de tudo foi uma criança com uma história triste e um fim trágico, despertam-nos um sentimento de ternura e estimulam a imaginação. Falo das pequenas sandálias de pergaminho, quase intactas; das caixinhas de jogos em marfim (quase que conseguimos imaginar a pequena criança, morena, de crânio rapado, a jogar o seu joguito em silêncio, antes de ser chamada a presidir a mais uma cerimónia longa e chata de gente adulta); falo de um busto muito vivo, expressivo e sorridente do pequeno rei, que contribuiu para dar espessura e personalidade humana ao mito; e muitos, muitos outros dos quais já não me recordo; então se falarmos dos objetos rituais, é um sem fim deles.

Outro problema do museu: as múmias. Um dos principais motivos que me trouxe ao Museu Egípcio foi ver de perto a múmia de Ramsés III, e também de Tutmósis, que durante décadas foram das principais atrações deste museu. Não estou certo de como era antigamente, mas sempre tive a ideia de que as múmias sempre estiveram expostas na ala geral, lado a lado com as restantes peças do museu. Talvez esteja enganado, mas era a ideia que tinha. A verdade, para minha desilusão, é que estão expostas numa ala especial, cuja entrada custa basicamente um segundo bilhete: 75 libras! Como digo, não estou certo se foi sempre assim ou não; mas se por acaso é verdade que elas foram movidas para uma ala especial que exige o pagamento de um segundo bilhete… estamos falados.

Terminadas as voltas e os zigzagues pelo segundo piso, desci ao primeiro. Dei mais uma espreitadela em algumas peças que não tinha visto ainda, sobretudo na ala intermédia, em frente ao hall de entrada. Depois dirigi-me à saída (que fica no lado direito do edifício), voltei a passar a mochila pelo detetor, e saí. Era por volta do meio-dia, e o sol batia forte, agressivo, moendo a carapinha (que vale eu tinha o meu super-chapéu).

2ª parte – Check-in no hotel; Compra bilhete para Luxor


Depois de almoçar rapidamente meia dúzia de bolachas energéticas na esplanada do café situado no pátio exterior do museu, finalmente saí pelo portão principal. Eram cerca das 12h30. O meu objetivo seguinte era o de ir à estação rodoviária de Al Maza comprar os bilhetes de camioneta para Luxor, pois tencionava visitar a cidade daí a três dias, e não queria correr o risco de chegar ao dia e não ter bilhete nem de ida nem de volta. No posto de turismo de Alexandria tinham-me dito que esta estação ficava perto de Ramsis, a estação central do Cairo (creio que me falaram em “5 minutos de carro”). Convencido disso, pensei que podia facilmente ir a pé, ou quem sabe apanhar o metro para lá (o Cairo tem metro subterrâneo). Do museu andei umas centenas de metros até à praça Tahir, só para lhe sentir o pulso histórico e tirar uma ou duas fotos, e depois atravessei a estrada para o lado do passeio que contorna a praça e comecei a perguntar às pessoas onde ficava a estação de Al Maza. Perguntei a um rapaz que inicialmente me abordou para me propor um “tour” qualquer, que devia trabalhar oficial ou oficiosamente para uma das agências que existem nessa rua, loja sim loja não. Afavelmente, respondeu-me que eu tinha de ir primeiro à estação de camionetas que ficava por detrás do Museu Egípcio, debaixo do viaduto onde eu tinha apeado nessa manhã, e perguntar se a camioneta que vai para o aeroporto do Cairo passava em Al Maza. Ou seja, mais complicado do que eu pensava.

Como estava muito calor e o sol atestava, decidi ir primeiro ao hotel fazer o check-in e tentar a minha sorte mais tarde. O meu receio era apenas que a estação de Al Maza fechasse demasiado cedo, e nesse dia eu já não fosse a tempo de comprar os bilhetes. Chegado ao pequeno hotel, que fica numa das ruas que irradia a partir da praça Tahir, e depois do check-in, liguei para a estação de Al Maza e pedi por favor ao rececionista idoso que falasse com quem quer que o atendesse para confirmar a hora de fecho da bilheteira (nas minhas próprias tentativas anteriores de contacto, ou não me atendiam, ou quando atendiam e percebiam que eu falava inglês desligavam-me a chamada). “Open 24 hours”, disse-me o rececionista, depois de uma conversa rápida com alguém do outro lado da linha. “Great!”, respondi; ainda tinha tempo.

Fui para o meu quarto, amplo e com duas camas, mas muito quente, fiz uma curta sesta, tomei um banho gelado (água quente, nem vê-la) e voltei a sair. Como ainda era cedo e hora de muito sol e calor (por volta das 15h), sentei-me no pequeno lobby do hotel a fazer horas e a enviar mensagens pela net à família. É um hotel muito simples, de duas estrelas, mas muito bem localizado e com mais de sessenta anos de história. Não tem mais de três pisos, e a receção situa-se no sétimo andar de um edifico com a mesma idade ou superior, com uma entrada muito larga que parece a de uma antiga garagem ou coisa que o valha. O elevador também é muito antigo, e não parece muito seguro, o que como é óbvio me deixou de respiração suspensa do primeiro ao último segundo das minhas ascensões e descensões. E quando perguntei ao vigilante onde eram as escadas, já com a intenção de subir por lá… “Estão fechadas”, responde-me com a maior das naturalidades… Sim, as escadas, que são também de emergência, suponho, estavam fechadas, atravancadas, eu sei lá…

Isto para dizer que o hotel é antigo, que todos os seus traços, paredes, soalho, e até os quadros nas paredes, transpiram influências coloniais francesas, e provavelmente britânicas. Como todas as coisas muito antigas que já viveram tempos mais felizes e áureos, tem um pouco o ar nostálgico de ruína. Mas, pelo menos no que diz respeito à internet wi-fi, soube atualizar-se.

Por volta das 16h estava na rua, e dirigia-me à estação de camionetas por detrás do museu, tal como o rapaz da agência me havia indicado. Perguntei a um homem que devia ter os seus sessentas e muitos, sentado perto de um pequeno quiosque, e que devia ser algum tipo de funcionário ou vigilante da estação, qual das camionetas ia para Al Maza. Não falava inglês, mas percebeu o sentido da minha pergunta e imediata e afavelmente pediu que me sentasse a seu lado, pois a camioneta que eu pretendia devia estar para chegar. Chegou; era o 1007.

A viagem até à estação de Al Maza demorou pelo menos uma hora. A estação, situada na beira de uma estrada, não era mais do que um espaço amplo ao ar-livre, cortado por filas de quiosques tipo contentor, que serviam simultaneamente de bilheteiras e escritórios. Apeei e dirigi-me a um dos contentores para perguntar onde podia comprar bilhetes da Superjet, a empresa de camionetas que tem rotas não só para Luxor, mas também para o Cairo, Alexandria, e outras cidades. Disseram-me que ficava noutra fila de contentores mais à frente; dirigi-me para lá, e finalmente encontrei um quiosque-bilheteira, encimado por uma banda publicitária da Superjet, que mais parecia vender coca-cola que bilhetes. Depois dos costumeiros atropelos na curta fila (chamar-lhe “fila” é abusivo; cá, em qualquer sítio, é perfeitamente normal as pessoas passarem à frente umas das outras), cheguei-me à frente para comprar o bilhete, mas o funcionário parece ter ficado muito admirado e admoestado por me ver; estava ali no meio de uma discussão qualquer que eu fui interromper, suponho, muito mais importante que a minha pretensão de cliente. “Good afternoon”, digo eu, fórmula que uso simultaneamente para me anunciar e para declarar, sem mais delongas, que não falo arábico. O homem faz uma expressão do tipo “que é que tu queres?”, como se não fosse normal as pessoas irem ali comprar bilhetes, e pergunta, num inglês esforçado mas num tom desagradado, como quem foi incomodado, “What do you need?”. “What do you need?!?”, respondo eu devolvendo a pergunta; “I need tickets!”. A conversa revelou-se difícil, porque ele praticamente não falava inglês (“fifty-fifty”, disse ele) e era mais do que evidente que o senhor queria era despachar-me rapidamente. Tentei explicar-lhe que queria um bilhete de ida para dia 13, sábado, e outro de volta para dia 15, terça-feira. Quando ao primeiro, tudo bem; lá me explicou que havia bilhete para sábado, mas com partida às 22h e chegada às 7h, o que eu já sabia. Mas quando lhe repeti que queria comprar também o bilhete de volta, imediatamente me respondeu num tom de grande impaciência que só podia comprá-lo em Luxor… Ou seja, depois de chegado a Luxor, após dez extenuantes horas de viagem de camioneta, é que eu podia saber se teria ou não bilhete para voltar no dia a seguir…

Embora eu quisesse muito ir a Luxor - em particular para visitar o extraordinário e intrigante Templo de Luxor, e talvez Karnak -, não podia dar-me ao luxo de ir sem ter a certeza de que podia voltar na data prevista. Uma noite a mais de hotel faz diferença para o “turista pobre” que anda com o dinheiro todo contado. Além do mais, no dia 15 ou 16, segundo tinha sido informado pela AIESEC, teria mudar de casa, pelo que não me podia dar ao luxo de voltar depois desse dia (vinha aí uma nova semana de adaptação, a pouco mais de 15 dias de voltar para Portugal…). Na viagem de regresso ao Cairo vinha a magicar como raio é que eu podia ter a certeza de que poderia comprar o bilhete de volta em Luxor…

Ora: no bilhete de ida estava escrito um número de informações da Superjet, em arábico (naturalmente). Uma vez chegado ao hotel, pedi ajuda uma vez mais, mas desta feita a outro rececionista; pedi que ligasse para esse número e perguntasse se eu podia estar certo de ter bilhete de volta para dia 15, se, uma vez chegado na manhã do dia 14, o comprasse imediatamente na estação de Luxor. Ele ligou, trocou meia dúzia de palavras com alguém do lado de lá, e desligou. Disse-me que sim; decididamente podia comprar o bilhete lá, desde que o fizesse impreterivelmente à chegada na manhã do dia 14, domingo. Mas como estar absolutamente certo?

Como se verá, no fim desta viagem de dois dias ao Cairo, e ponderadas todas as variáveis, acabei por deixar cair a viagem a Luxor. Mais à frente perceber-se-á melhor o porquê.

O dia já ia muito longo (e também já vai muito longa esta narrativa). Enquanto jantava quatro ou cinco fatias de pão Baladi no quarto de hotel, compradas num mercadito lá perto, comecei a preocupar-me seriamente com o modo como haveria de chegar ao Planalto de Guiza (Pirâmides) na manhã do dia seguinte. Nessa manhã, o rapaz que eu conheci no minibus que me levou ao Cairo disse-me que havia uma estação de metro em Guiza, e que daí podia apanhar um minibus por duas ou três libras até ao Planalto. Mas, uma vez mais, como ter a certeza? Umas vezes dizem que é perto quando é longe; outras vezes longe quando é perto... Nunca se pode estar absolutamente certo. E quando se está sozinho pela primeira vez numa cidade tão grande (o Cairo é simplesmente gigantesco; cabem, disseram-me, quatro Alexandrias, e Alexandria já é grande o suficiente para nele caberem cerca de quatro milhões de habitantes…), a incerteza é maior ainda. E depois das estopadas deste primeiro dia, a pé, de minibus e de autocarro, começou a parecer-me pouco sensato palmilhar a pé e de transportes todo o caminho que vai do centro do Cairo ao subúrbio periférico de Guiza, a dezenas de quilómetros do centro, correndo um sério risco de me perder e chegar lá depois da hora de abertura, ou de chegar lá tão esgotado que não fosse capaz de apreciar devidamente aquelas maravilhas.

Nesse sentido, a proposta que umas horas antes, ao check-in, o rececionista fez de me disponibilizar um condutor do hotel para me levar e trazer de Guiza, e que eu na altura prontamente recusei, começou agora a parecer-me bem mais tentadora. Afinal, o que são 20 dólares (150 libras, cerca de 17 euros) para se ser levado e trazido de volta, a tempo e horas, sem desvios, sem desorientação, sem desperdícios de tempo e energia, sobretudo quando está em jogo a visita de uma vida, com a qual se sonhou e pela qual se esperou tanto? Cheguei a pensar: e se simplesmente apanhar um táxi na rua que me leve lá, não será mais barato? Depois percebi que não, visto que eles cobram ao quilómetro, pelo que quase de certo me ficaria mais caro.

Vesti-me e dirigi-me à receção, decidido a saber mais informações (sou muito desconfiado). O rececionista confirmou que sim, que de facto têm um motorista que trabalha para o hotel, e que o preço total para ser levado e trazido de Guiza era de 150 libras. O motorista deveria levar-me lá, esperar por mim lá, e trazer-me de volta. Se eu aceitasse teria de fazer o pagamento imediatamente, e diretamente ao hotel, que depois contactaria o motorista a solicitar o serviço e a confirmar a hora a que me viria buscar de manhã. Finalmente aceitei; o rececionista ligou para o motorista e confirmou a hora: 8h15. Fui ao quarto buscar o dinheiro, paguei e pedi um recibo, como de costume. Mas… por qualquer razão que nunca cheguei a entender bem, o rececionista não me queria dar recibo! Subitamente, o verniz daquela simpatia e solicitude quebrou-se ao meu pedido. Porquê? “No receipt”, disse ele. Creio que ele ficou confuso, pois só passam recebidos das dormidas, mas sendo o serviço de motorista prestado pelo hotel, argumentei eu, tinha de me passar recibo! Quando eu já estava pronto a pedir o dinheiro de volta, entra outro colega na receção, o tal que me tinha ajudado umas horas antes com a chamada para Luxor. Este, quando percebeu a minha exigência, trocou umas palavras com o colega como quem diz “passa-lhe o recibo!”; este, meio contrariado, já meio esfumada a simpatia inicial, e sem me olhar nos olhos, lá escrevinhou no papel do recibo qualquer coisa como “Trip receipt – 150 pounds”, e entregou-mo. Para quê complicar??

Eu percebo: estas coisas não são feitas de modo oficial, mas de modo “oficioso”, tudo entre amigos. Recibos e registos para quê?

Antes de ir para o quarto ainda fiquei uns instantes na receção, a folhear alguns dos livros e revistas em inglês e francês que constituem a pequena livraria do hotel, e que se foram empilhando ao longo de anos de esquecimentos, abandonos, e ofertas quem sabe, dos muitos clientes que por lá passaram. Estava muito cansado, mas ao mesmo tempo inquieto; não me apetecia ir já fechar-me naquele quarto fechado a abrasado. Depois lá acabei por ir.

Finalmente, depois de mais um banho de água fria (com o calor até sabe bem), fui-me deitar. Os acontecimentos do dia, a incerteza, tudo isto dançava na minha cabeça e mantinha-me desperto. Tentei focar-me no principal: na manhã seguinte, se deus quisesse, iria finalmente ver as pirâmides de Guiza com os meus próprios olhos, e estar face a face com a Esfinge.


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